POR ALANNA SOUTO
Na umbanda sagrada, religião anárquica e genuinamente
brasileira, bem como as religiões de matriz afro, a representação do divino,
também chamado simbolicamente de ‘O criador”, manifesta-se a partir da dupla
polaridade de energias, masculina e feminina, que se desdobrará em diversas
emanações divinas ou tronos da criação, como se refere Alexandre Cumino em sua
obra Deus, deuses, divindades e anjos (2008), assentados e comandados pelo que
se chama de Orixás. Em cada um desses tronos da criação há um correspondente
masculino e feminino com determinada funcionalidade no âmbito da arquitetura
divina, constituindo assim uma espécie de “yin e yang” da umbanda sagrada que
irá reger cada reino natural do planeta e cada ser humano.
E nesta configuração das “realezas” dos orixás a partir
de um criador uno, mater e pater, as representações femininas, também chamadas
de yabas, carregam um poder simbólico muito forte atuando assim como
verdadeiras expressões de empoderamento feminino dentro e fora do espaço
sagrado, dando voz e força, especialmente para mulher e todo gênero que a
identifica.
No passado, as complexas sociedades pagãs, como a antiga
Roma, tentavam conciliar etnias e suas culturas respeitando todas as deidades
com que deparavam, mas em geral cada cultura se concentra em algum aspecto
divino. Logo cada caminho espiritual também estará conectado com a arvore da
vida cabalística e suas representações nas sefirots que também tem suas
emanações femininas.
Sendo assim numa sociedade ocidental colonizada e forjada
na crença judaico-cristã, nômade e patriarcal, que o tempo todo associou D`us à
uma representação masculina, usando termos, “pai” e “pastor” para designar o
divino, aonde o mito da criação, segundo uma perspectiva interpretativa senso
comum machista, puniu a mulher por ter se deixado manipular pela lábia canalha
da serpente ao provar do fruto proibido da intocável árvore da sabedoria e
induzido ainda o santo Adão ao mesmo pecado, resignou na memória popular, o
papel de fragilidade, aleivosia e perfídia à mulher, confundindo-a com a
própria serpente, que se diga de passagem, a cobra na umbanda tem uma
representatividade sagrada, simbolizando cura e perspicácia, não à toa, animal
de força da yabá mamãe Oxum.
Nesse sentido dentro do âmbito da cultura popular também
encontraremos os espaços de resistências, os espaços de vivências de povos
transportados de outro continente, das mais antigas e ricas civilizações
escravizadas que juntamente com os indígenas para além dos casamentos
inter-raciais com “brancos” formarão uma grande população mestiça de forte
identidade afro-indígena e “cabocla” no caso da sociedade amazônica ainda em
meados do século XVIII.
Esta sociedade miscigenada invisibilizada no seio da
formação da sociedade brasileira em grande parte pelo discurso e representações
da documentação oficial passa então demarcar seus espaços e subverter a ordem
estabelecida por suas noções de espiritualidade herdadas e re-inventadas, aonde
as yabás serão as grandes matriarcas sustentadoras dos espaços [fronteiras] de
liberdade, a exemplo, dos quilombos e mocambos, espaços muitas vezes de
encontros de índios e negros fugidos dos espaços de poder, especialmente na
Amazônia, formando assim uma grande rede de solidariedade, subversão e
resistência.
E nessa paisagem de conflitos quando cada amocambado
pedia por vida, intervia Iemanjá, a geradora; quando solicitava-se prosperidade
e união “familiar” intervia Oxum; quando necessitava-se guerrear e pensar
estratégias de luta, chamava-se por yansã; e quando a vida parecia está por um
fio, a velha yabá chegava devagarzinho com seu cajado para tecer esperança de
viver e revitalizar as forças, curar e defender de todas as enfermidades
geradas pelo terror da escravidão.
Por fim, há ainda, inabalável “moça” da festa, a exu
mulher, a pomba-gira que gargalha na cara da sociedade castradora da sexualidade
feminina e que secularmente apedreja a prostituta, a trabalhadora que vende o
corpo por sobrevivência. A “Geni” guardiã das ruas, dos céus e dos infernos,
aquela que resgata e equilibra os instintos mais vis, as Rosas que conduzem e
libertam, mas que também prendem em seus espinhos e punhais aqueles que
desafiam a Lei divina em ação.
Da “coisificação” do índio ao negro às mulheres afros,
indígenas e caboclas violentadas e marginalizadas no campo e a beira rio, a
floresta enegrece e amamenta suas crias que nunca se calaram, pois até os seus
sábios silêncios são gritos constrangedores de denúncias ao mais vil deus homem
das senzalas rurais e urbanas pós-modernas, pátrio decadente que cada vez mais
tem dificuldade de respirar, o velho Chico chega no século XXI agonizando, teme
a empáfia cabocla, “ as mulheres do fim do mundo” que vão para o enfrentamento;
assusta-se com a nordestina selvática que subverte os espaços estelitas ou
ainda “a marcha das vadias” desafiando os coronéis de gravatas de Norte à sul do
país.
As icamiabas reagem, e sua melhor arma é o empoderamento
educacional de suas identidades e raízes ancestrais. Uma árvore que vale a pena
plantar e amar.
A mãe natureza, a criatriz que semeia a terra, gere suas
“tribos” e demarca seus espaços das representações, embala e conta a história
do seu povo, fortalece seus ancestrais, filhos e netos.
Das lendárias amazonas que botaram para correr os
hispânicos em suas naus de sangue, guardiãs dos mais longínquos rios de água
doce às Yabas rainhas, caboclas da encantaria e suas pajés, curandeiras,
zeladoras do santo, yalorixás de seus povos tradicionais de terreiro. Um alento
materno, um canto de amor, força e luta.
ARREDA HOMEM QUE AÍ VEM MULHER!
ALUVIÁ, A GRANDE MÃE!
OKÊ, OKÊ, ARÔ CABOCLAS
ARANAUAM!
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