Nonato Reis
Viana tem uma dívida impagável com Marcelino José
Trancoso, o médico e farmacêutico que, mesmo sem diploma acadêmico, cuidou da
saúde de meio mundo naquelas redondezas e livrou da morte outros tantos,
praticamente à beira da sepultura. Isso num tempo em que não serviço de saúde
pública na cidade e os remédios eram manipulados em farmácias improvisadas com
baldes de zinco, tigelas de cerâmica e depósitos de vidro.
Corria a primeira década do século XX. Natural de
Rosário, Marcelino Trancoso chegou em Viana ainda jovem, para se estabeler em
uma quinta às margens do Igarapé do Engenho, no lugar onde, quase dois séculos
antes, os jesuítas da Missão de Conceição do Maracu ergueram a fazenda São
Bonifácio, maior empreendimento agropecuário da região, com 20 mil cabeças de
gado, engenhos de açúcar e áreas próprias para o cultivo de cana, milho, arroz,
mandioca e feijão.
Para quem não sabe, a fazenda São Bonifácio do Maracu é
considerada marco inicial da colonização de Viana. Além da casa grande, havia
uma igreja, erguida na margem oposta do Igarapé do Engenho, onde os inacianos
faziam as suas orações e prestavam louvores ao Senhor.
Nos fundos e ao lado da igreja, construíram dois
cemitérios, um para crianças e outro para adultos (este denominado de Cemitério
dos Tamarindeiros, guarnecido por dois grandes exemplares da espécie).
Trancoso era atlético, “de voz rouca e velada”, na
definição de Sálvio Mendonça, em seu livro “História de um menino pobre”.
Visitava os pacientes a domicílio todos os dias pela manhã, montado a cavalo,
como se fosse um coronel das antigas, calçado com botas altas, usando esporas e
rebenque.
Diagnosticava as doenças apenas pelo tato e mediante o
exame físico dos olhos. Dificilmente errava o diagnóstico e seus remédios
pareciam revestidos de poderes mágicos.
Mas não apenas clinicava, como também fazia intervenções
cirúrgicas. Às vezes, apenas de posse de um canivete ou de uma serra, lancetava
tumores, abria incisões, amputava dedos e até membros.
Do horto cultivado em sua quinta, preparava fórmulas
diversas, às quais dava nomes engraçados e até inusitados, como “o peitoral de
urucu”, para úlceras; o “lambedor de jurubeba”, para prisão de ventre, o
"sumo de são caetano”, para hemorroidas; e até as "pílulas arrebenta
pregas”, cuja finalidade dispensa explicações.
Para as populações ribeirinhas ao longo do Igarapé do
Engenho e até da cidade, Trancoso era quase uma divindade, reverenciada e
temida (por suas previsões fúnebres). Se despachava o enfermo, os familiares
podiam preparar o óbito. Mas era capaz de dar vida ao moribundo, e em pelo
menos três situações fez o doente levantar praticamente à beira da sepultura.
Como o caso do homem que perdeu peso e cor de repente.
Ficou branco feito uma vela, a barriga cresceu, não comia mais nem bebia. O
desenlace parecia iminente. Chamado às pressas, Trancoso olhou o doente nos
olhos e decretou: “você não vai morrer, pelo menos agora”.
Depois mandou providenciar uma bacia com leite morno ao
meio, ordenou a todos que se
retirassem do quarto e instou o sujeito a ficar nu
de cócoras sobre a bacia, sem olhar para baixo. “Só levante quando eu mandar!”.
Meia hora depois, jazia na bacia uma cobra imensa, medindo sete metros de
comprimento. “Era isso o que te matava!”.
De outra feita, Trancoso participava de uma vaquejada na
Palmela. Uma adolescente negra brincava de pular sobre mesas com garrafas de
bebidas. O pé dela bateu em uma garrafa, o corpo desequilibrou e ela caiu em
cambalhotas. No choque com o chão, a garrafa de vidro quebrou e uma parte dela,
feito lança, atingiu a barriga da menina, rasgando-a de cima a baixo, deixando
à mostra as vísceras que se misturaram a fezes de animais sobre o chão.
Trancoso mandou que providenciassem agulha e fio, e ali
mesmo, com a mesa improvisada de centro cirúrgico, limpou as vísceras,
recoloco-as na cavidade abdominal e costurou a barriga da menina, que
sobreviveu por milagre, livre de infecções.
Ao comentar o caso, Sálvio, então médico formado,
atribuiu o feito à forte estiagem da região, que expunha o solo à ação direta
dos raios solares. Naquela condição, segundo ele, os riscos de infecção se
reduziam drasticamente.
Porém o caso mais rumoroso que deu à figura de Trancoso
ares de mito foi a de um vaqueiro que, após um mal estar súbito, veio a óbito.
Chamado para a sentinela, Trancoso, como sempre o fazia, aproximou-se do
defunto e tentou abrir suas pálpebras, para o exame visual dos olhos. Depois,
de posse de um espelho virgem, pressionou-o sobre o nariz do falecido.
Ao retirá-lo, após alguns minutos, Trancoso notou
gotículas sobre o vidro. Então, pegou um tijolo e o colocou no fogo até ficar
vermelho em brasa. Enrolou-o a um pano e o colocou sob a planta dos pés do
morto, que na mesma hora deu um berro medonho e pulou fora do caixão, deixando
a plateia em polvorosa. Perplexo, o povo tratou de fugir para o mato.
Trancoso, na maior calma, o olhar grave, explicou depois
que aquilo nada tinha de sobrenatural. “É uma doença pouco conhecida, que
paralisa os órgãos do paciente e dá a impressão de que ele está morto. O risco
é que, por ignorância, acabem por enterrá-lo vivo".
Nos anos 70, quando o ator Sérgio Cardoso, após um ataque
de catalepsia, foi dado como morto e assim sepultado, o Ibacazinho evocou a
memória do velho farmacêutico. Tivesse o galã da TV um Trancoso por perto,
dificilmente teria morrido em condições bizarras.
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