A inédita intervenção federal no Rio de Janeiro, com a
transferência do controle da segurança do Estado para um general, ainda
engatinha, mas, em termos de agenda, já tomou de assalto o país e despertou os
fantasmas sobre os limites e riscos da atuação do Exército na vida política
brasileira, ecoando traumas nada adormecidos
da última ditadura. Enquanto especialistas em segurança pública e ativistas de
direitos humanos debatiam os eventuais problemas para atuação das Forças
Armadas nas ruas fluminenses, foi o próprio comandante do Exército, o general
Eduardo Villas Bôas, que deu combustível de vez às polêmicas comparações.
Durante a reunião dos conselhos nacionais da República e da Defesa na
segunda-feira, Villas Bôas afirmou que estava preocupado com a instituição de
uma nova “Comissão da Verdade” após o fim da intervenção no Rio.
A declaração, divulgada primeiro por uma colunista da
GloboNews Cristiana Lôbo e confirmada ao EL PAÍS por três participantes da
reunião no Palácio da Alvorada, correu como pólvora porque muitos dos críticos
da intervenção federal, parte ou não da oposição partidária ao Governo Temer,
viram nela um pedido de impunidade e desrespeito. Afinal, Villas Bôas fazia
referência nada menos do que à Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída
apenas no Governo Dilma Rousseff (2010-2016), que investigou graves violações
de direitos humanos especialmente no último regime militar. Em seu relatório de
conclusão, de 2014, 377 pessoas foram apontadas pela CNV como responsáveis
pelos delitos, impedidos até agora de serem julgados por conta da vigência da
Lei da Anistia.
"As comissões da verdade se fazem necessárias
exatamente quando os agentes do Estado se autoconcedem mecanismos de impunidade
caso atuem em desacordo com os diplomas legais em vigência", protestou, em
nota de repúdio ao general Villas Bôas, os membros da Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos, criada por lei em 1995 e predecessora da CNV.
A comissão lembrou na nota que foi graças ao trabalhos como o da CNV que se
conseguiu a identificação, justamente nesta terça-feira, do desaparecido
político Dimas Antônio Casemiro entre as centenas de remanescentes ósseos da
vala clandestina do cemitério de Perus, em São Paulo. Militante de esquerda,
Dimas foi morto em abril de 1971 por agentes do Estado na ditadura após dias de
tortura.
Um conjunto de procuradores da áreas criminais e de
direitos humanos também divulgou nota técnica com vários reparos ao decreto da
intervenção. Nele, fizeram questão de frisar a "perplexidade" com a
declaração de Villas Bôas. "(A declaração) é grave, principalmente, porque
ela legitima os abusos da ditadura. Uma ditadura que torturou, matou, censurou.
E isso em um momento onde visões revisionistas ganham peso na sociedade. E,
pior, ela aponta para a ideia de que esse é um momento de exceção, como ele
acredita que foram de exceção os anos da ditadura, e que nesses momentos,
militares devem ter carta branca para violarem direitos sem que tenham que
prestar contas a civis", escreveu, em sua página do Facebook, Pedro
Abramovay, ex-secretário da Justiça do Governo Lula e diretor para a região da
Open Society Foundations.
Problemas legais
A fala de Villas Bôas remete concretamente preocupações
legais a respeito das consequências da atuação no Rio que provocam grande
mal-estar no contingente militar. Três participantes da reunião no Alvorada
relataram que Villas Boas, um crítico contumaz do uso dos militares na
segurança pública, está temeroso com a intervenção. “Ele sabe que vários crimes
vão cair nas costas dos subordinados ao interventor. E ele não quer que esses militares
sofram na Justiça”, ponderou uma autoridade que esteve no encontro com o
presidente Michel Temer.
General Villas Boas
✔
@Gen_VillasBoas
Pedi ao twitter do @exercitooficial q iniciasse uma
campanha de esclarecimento junto à sociedade brasileira sobre a
#intervençãofederal na segurança do RJ, abordando conceitos e comunicando
ações. https://twitter.com/exercitooficial/status/966044372365119490 …
17:41 - 20 de fev de 2018
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Mais tarde, o general disse em seu Twitter ter apresentado
a Temer nesta reunião "algumas considerações fundamentais" para o
êxito da intervenção no Rio: "integração do Poder Judiciário e do
Ministério Público, alteração no regramento jurídico e recursos financeiros
adequados". Villas Bôas não detalhou o que quer mudar quanto ao
"regramento jurídico".
Seja como for, a legislação em vigor já é polêmica por si
só. Desde 1996, os militares denunciados por homicídios eram julgados da mesma
maneira que os civis, pelo Tribunal do Júri. Mas, em outubro do ano passado,
isso mudou em alguns casos. O Congresso Nacional aprovou uma lei que transfere
da Justiça comum para a militar a responsabilidade para julgar os militares que
cometerem homicídios durante operações militares. A lei foi batizada pelas
entidades de direitos humanos como “licença para matar”. Apesar de já estar
vigente, foi questionada no Supremo Tribunal Federal e, nos próximos meses,
pode ser declarada inconstitucional.
Outros fantasmas
Antes mesmo de verbalizar sua preocupação com a questão
jurídica do Rio, Villas Bôas já havia deixado claro que as diversas operações
envolvendo militares poderiam ser inócuas. Uma reportagem do Congresso em Foco
trouxe à tona declarações do general sobre o assunto. Em uma delas, disse que o
uso de tropas na segurança pública era “desgastante, perigoso e inócuo”. No fim
do ano passado, ele foi mais direto e usou sua conta no Twitter para esboçar
seu desconforto: “Preocupa-me o constante emprego do @exercitooficial em
‘intervenções’ (GLO) nos Estados. Só no Rio Grande do Norte, as FA já foram
usadas 3 X, em 18 meses. A segurança pública precisa ser tratada pelos Estados
com prioridade ‘Zero’. Os números da violência corroboram as minhas palavras”.
Nos últimos dois anos, o governo empregou as tropas em 18 operações de Garantia
de Lei e Ordem (GLO). Nenhum balanço sobre essa atuação foi divulgado até o
momento.
Agora, atropelado pela jogada política do Planalto no Rio,
o esforço de Villas Bôas parece ser também tentar conter os danos à imagem da
instituição, no centro da polêmica por causa do Rio. O general, prestes a se aposentar
e enfrentando esclerose lateral amiotrófica, uma doença generativa agressiva,
anunciou ter pedido ao Exército "uma campanha de esclarecimento junto à
sociedade brasileira".
O movimento não é à toa. O fantasma da ditadura militar não
apareceu apenas na citação da CNV. Já na sexta-feira, quando o presidente
Michel Temer (MDB) assinou o decreto da intervenção, uma das principais buscas
no Google era “intervenção militar”. Em algumas horas do dia apareceram entre
as principais buscas termos como “intervenção federal” ou “AI-5” – o ato
institucional de 1968 foi o mais severo da ditadura, suspendeu garantias
constitucionais e fechou o Congresso Nacional.
Nesta terça, o Exército divulgou mensagem no Twitter
diferenciando "intervenção federal" de "intervenção
militar". Já o Comando Militar do Leste, dirigido pelo novo interventor do
Rio, general Walter Braga Netto, também divulgou sua nota de esclarecimento:
"O processo de intervenção está em fase inicial. A equipe que trabalhará
diretamente com o interventor está sendo formada e será anunciada nos próximos
dias. De igual modo, as primeiras ações serão divulgadas oportunamente.
Salienta-se que a intervenção é federal; não é militar. A natureza militar do
cargo, à qual se refere o decreto, deve-se unicamente ao fato de o interventor
ser um oficial-general da ativa do Exército Brasileiro".
A intervenção federal do Rio terminou a terça-feira
completamente ratificada pelo Congresso Nacional. Na madrugada, a Câmara
aprovou o decreto de Temer. No fim da noite, foi a vez do Senado. Mas, enquanto
os militares tentam se comunicar diretamente com o público e se queixam em
privado sobre uma possível falta de amparo legal, as entidades da sociedade
civil já se movimentam contra a intervenção. A Associação de Juízes para a
Democracia emitiu uma nota de repúdio ao decreto de Temer. No documento, a
entidade diz que o ato presidencial está “eivado de inconstitucionalidades”: “A
natureza militar da intervenção, mal disfarçada no parágrafo único do art. 2º
do decreto, além de inconstitucional, remete aos piores períodos da história
brasileira, afrontado a democracia e o Estado de Direito.”
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