sexta-feira, 12 de abril de 2024

O LIVRO SEM ALMA EXISTE! - artigo do poeta e escritor Mhario Lincoln


O LIVRO SEM ALMA EXISTE!

*Mhario Lincoln

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Sabe aquele livro que você vê na prateleira, capa linda aí corre para ler e não passa da página 10? Esse é um livro sem alma. Sem respostas. Um livro composto por argumentações pessoais e intransferíveis, onde ninguém consegue transpor a barreira egóica do autor.

É um livro sem alma porque quem o escreveu o fez para ele mesmo. Quer mostrar para o maior número de pessoas, mas o texto impresso ali é literalmente só para o autor entender.

E se a gente for definir um livro sem alma é exatamente assim: a alma se despede das folhas e o livro vira um corpo inerte em uma cova rasa. Logo começará a exalar odores ruins e os sonhos soçobram diante da ideia de que escrever um livro é escrever exclusivamente para o autor ler e ponto final. Assim, mesmo que se distribuam milhares de cópias, a ninguém será dado o direito de comentar, criticar, induzir, indeferir, argumentar, sugeri, aconselhar...

E qual seria o futuro do livro sem alma? Servir de moeda de troca nos saraus, decoração na estante da sala, ser capa de Facebook, ou folha de rosto do Instagram; ou, simplesmente, um peso de mesa.

Porém, um livro que tem alma, geralmente vem ao encontro das perguntas mais interiores do leitor. Perguntas abissais até... E quando esses questionamentos batem com as respostas de um livro com alma, 'abracadabra', o milagre acontece!

Pode até não virar um bestseller, porque bestsellers, na maioria dos casos, só o viram bestsellers, enquanto produtos de marca das editoras e da grande mídia percentualmente gerando vantagens próprias.

Mas livros com alma, tocam tão profundamente o leitor que ele faz questão de guardá-lo na cabeceira de sua cama e, por inúmeras vezes, volta a abri-lo, antes de dormir.

E como surgem os livros com alma? São os livros escritos não para alcançar a fama - a passageira fama – nem para mostrar para os ‘coleguinhas’ que a pessoa ‘sabe escrever’ ou que também, ‘tem um livro publicado’. Porém para tentar compartilhar, dividir, partir uma ideia que possa servir para algo ou alguma coisa lá na frente. Que tenha algo que possa a ser citado.

Aliás, meu pai, quando cheguei afoito e eufórico com meu primeiro livro de Direito às mãos, saído da impressora naquele instante, ele olhou, pediu calma e me deu uma das maiores lições que recebi até hoje: “... filho, só se considere autor quando alguém de seu círculo ou de fora dele, citar seu livro em algum momento. Antes, ele é apenas um papel impresso”. Curto e grosso!

À princípio não entendi. Anos depois, após estudar calorosamente em vários livros com alma, voltei a raciocinar sobre o que meu pai José Santos disse e imediatamente linkei com as várias sábias palavras. Dentre elas, Platão quando em "Fedro", discute a importância da escrita e dos livros como uma forma de transmitir conhecimento e o ‘start’ para uma interação direta entre pessoas. Isso é lindo.

Outro grande sábio, Agostinho de Hipona, em "Confissões", fala sobre a importância da interpretação dos livros, inclusive da Bíblia, como orientação singular. Já Michel de Montaigne valorizava tanto os livros que um dia disse que eles, “(...) eram instrumentos de autoconhecimento e reflexão”, e a leitura de um bom livro, “deveria ser uma experiência pessoal e não apenas acadêmica”. Acertou em cheio, não?

Pois bem, livros com alma são bem diferentes, pois, antes de mais nada, incitam a importância da leitura para adquirir conhecimento e desenvolver o pensamento crítico. Ou seja, o autor dá a chance ao leitor, para suspeitar, dialogar, discutir, discordar do que ali está escrito. Exatamente essa chance do diálogo ou da discordância é que deixa os escritores egoístas e doentes, furiosos porque, nem eles, são donos da verdade, ou como o próprio Sócrates ensinava: “ninguém possui um conhecimento absoluto ou definitivo da verdade”.

Enfim, o livro com alma é um livro que consegue dividir ideias com o leitor, que é o objetivo legítimo da obra. E essa legitimação, essa imersão do leitor diante das ideias plurais (e não só pessoais) do autor, soam como um carimbo cartorário, aquele mesmo que concede fé pública ao documento.

Assim, quando você tentar ler um livro que não diverte, não define nada, não aconselha, não reclama, não chora, não abandona, não clama, não odeia, não ama... fuja dele, mesmo que tenha na capa a mais linda das ilustrações e o mais digno prefaciador. Apenas fuja dos hologramas fluídicos que embaçam a visão e o entendimento e acabam por fazer o leitor retroceder em seu legítimo direito de escolha.

*Mhario Lincoln é poeta, jornalista e Editor-sênior do Facetubes (www.facetubes.com.br)


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