A volta do dumbphone
Ruy Castro*
Outro dia, tive a grata satisfação de ler que os fabricantes de celulares, depois da vitoriosa invenção do smartphone, vêm aí com uma nova revolução: o dumbphone. Assim como smart, palavra da língua-mãe que significa esperto, safo, sabichão, dumb quer dizer burro, tapado, incompetente. É um alívio saber que essa segunda categoria, à qual pertenço, será finalmente contemplada com um aparelho à altura da sua dumbice.
Talvez muitos hoje não saibam, mas, quando o lançaram no mercado, há uns 30 anos, todo celular era dumb —só servia para telefonar. Por já ter telefone em casa, não me interessei em comprar um —não havia uma chamada tão importante que eu precisasse fazer ou receber na rua. E, assim como ninguém saía de casa levando seu telefone preto, um telefone portátil também me parecia inútil. Além disso, as cidades eram coalhadas de orelhões.
Poucos anos depois, os dumbs começaram a ficar smarts e passaram também a fotografar. No começo, seus usuários se atrapalhavam e, sem querer, fotografavam a própria orelha. E, assim como já tinha em casa uma valente Nikon, que só usava em ocasiões especiais, também não me vi na obrigação de adquirir o aparelho.
O que aconteceu depois foi muito rápido. Todos os celulares ficaram subitamente smartíssimos e, inspirados pelo velho Bom-Bril, passaram a ter 1.001 utilidades. As telinhas se povoaram de ícones, capazes de receber recados, chamar táxis, tocar música e tirar selfies ao lado de famosos. Continuei esnobando-os. Foi um erro. Não podia adivinhar que, um dia, surgiriam as maravilhosas redes sociais, permitindo mandar fotos de pizza, receber vídeos de batizados, disseminar fake news, seguir influencers, enviar mensagens de ódio, ignorar o professor em sala de aula, comprar pornografia e aplicar a mesada, o salário ou o Bolsa Família nas bets. E tudo tão fácil e tentador, acessível até às crianças de cinco anos.
Agora, os educadores estão achando que isso não faz muito bem às crianças. Daí a volta dos dumbphones —para mantê-las a salvo dessas tentações. Mas ainda será possível? Já não há crianças dumb. Adultos, sim.
Folha de São Paulo, 02/10/2024
Ruy Castro é acadêmico da Academia Brasileira de Letras
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