Naquele tempo, daquelas décadas, não havia WhatsApp nem Facebook: a rapaziada do tempo gostava de ler jornais, principalmente do Rio...
Uma ou duas horas da noite de todos os dias, depois da chegada
do avião da Panair, os jornaleiros já gritavam pelas ruas da cidade:
- O Jornal chegou, tem globo, tem última hora...
E eu corria com uns trocadinhos na mão par comprar a Última
Hora, um jornal de Samuel Wainer, fundado em 1951...
Lia quase todo jornal, principalmente as crônicas de
Antônio Maria...
E aqui vai uma das crônicas do saudoso Antônio Maria para a
leitura de todos, nesta segunda-feira, 30 de abril de 2018:
Soneira e Preguiça
Antônio Maria
Não sei, mas com esse tempo assim, essas nuvens pesadas,
meu peito opresso, daria um conto e seiscentos para ser Augusto Frederico
Schmidt e não precisar trabalhar. Falar nisso, onde anda Augusto, que nunca
mais me telefonou? Comunistizou-se, na certa. Sempre achei que Augusto daria um
militante da Quinta Casa.
Com esse tempo assim, se pudesse; subiria a Petrópolis (uma
Petrópolis, é claro, avant les roses), pegaria um Simenon, protagonizado por
Maigret, e não sairia da cama. Sinto uma soneira, uma preguiça! Por que será
que não tenho coragem de enriquecer? Quase todos os meus colegas de imprensa
enriqueceram, acordando cedo, indo à cidade e vendendo suas palavrinhas, a um
conto e quinhentos. O jornalismo, bem administrado, é tão bom negócio quanto a
especulação imobiliária e o jogo da bolsa. Querendo, a gente vende bem aquilo
que publica e, melhor ainda, aquilo que não publica.
Outro negócio que eu poderia fazer, sem grandes canseiras,
era agiotagem. Ah, daria um grande agiota! Às vezes, me olho no espelho e vejo
o agiota. Eu tenho os olhos pequenos do agiota magnífico. A matéria-prima da
agiotagem, como sabeis, é o dinheiro... e dinheiro, com as amizades que tenho,
seria canja conseguir. Tomaria, nos bancos, a 1% e emprestaria a 7%. Com o
físico que Deus me deu (e quase tira), exigiria bons avalistas — do gabarito de
Walter Moreira Salles para cima.
Deixa de besteira, Antônio. Vai trabalhar. Teu combustível
é a preguiça. O "autêntico real, o cerne da tua filosofia", como
disse Novalis. Não fosses tão preguiçoso, estarias ainda botando esterco, com
as mãos, nos canteiros de cana da usina Cachoeira Lisa. Escreve, Antônio.
Escreve sobre o Nada, suas causas e conseqüências. No Nada, por exemplo, há uma
senhora nua, tocando cavaquinho. Um menino montado num leão. Uma cobra de salto
alto. Fazer poesia é mais fácil do que carregar um piano — do que tocá-lo, como
os dedos de Leon Fleisher. Para que chegues à poesia, basta que te aprisiones
em ti mesmo e cuspas vigorosamente a face dos outros. O poeta tem que ignorar o
próximo e odiar a si mesmo. (Palavra de honra, jamais escrevi frases tão
estúpidas. Mas vão ficar, porque se retirá-las a crônica ficará menor.).
Passando do Nada ao Tudo. Isto é, voltando à realidade,
telefonei para a rádio, a televisão, e soube que estava em greve. Eu estou em
greve, meus amigos. Meus companheiros se batem por salários que não irão
aumentar os meus e por um aumento de programação ao vivo, que só aumentará, em
muito, minhas obrigações. És um homem lamentável, Antônio. Viva a greve!
23/11/1963
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