segunda-feira, 30 de abril de 2018

Eu e Antônio Maria


Naquele tempo, daquelas décadas, não havia WhatsApp nem Facebook: a rapaziada do tempo gostava de ler jornais, principalmente do Rio...

Uma ou duas horas da noite de todos os dias, depois da chegada do avião da Panair, os jornaleiros já gritavam pelas ruas da cidade:

- O Jornal chegou, tem globo, tem última hora...

E eu corria com uns trocadinhos na mão par comprar a Última Hora, um jornal de Samuel Wainer, fundado em 1951...

Lia quase todo jornal, principalmente as crônicas de Antônio Maria...

E aqui vai uma das crônicas do saudoso Antônio Maria para a leitura de todos, nesta segunda-feira, 30 de abril de 2018:

Soneira e Preguiça

Antônio Maria

Não sei, mas com esse tempo assim, essas nuvens pesadas, meu peito opresso, daria um conto e seiscentos para ser Augusto Frederico Schmidt e não precisar trabalhar. Falar nisso, onde anda Augusto, que nunca mais me telefonou? Comunistizou-se, na certa. Sempre achei que Augusto daria um militante da Quinta Casa.

Com esse tempo assim, se pudesse; subiria a Petrópolis (uma Petrópolis, é claro, avant les roses), pegaria um Simenon, protagonizado por Maigret, e não sairia da cama. Sinto uma soneira, uma preguiça! Por que será que não tenho coragem de enriquecer? Quase todos os meus colegas de imprensa enriqueceram, acordando cedo, indo à cidade e vendendo suas palavrinhas, a um conto e quinhentos. O jornalismo, bem administrado, é tão bom negócio quanto a especulação imobiliária e o jogo da bolsa. Querendo, a gente vende bem aquilo que publica e, melhor ainda, aquilo que não publica.

Outro negócio que eu poderia fazer, sem grandes canseiras, era agiotagem. Ah, daria um grande agiota! Às vezes, me olho no espelho e vejo o agiota. Eu tenho os olhos pequenos do agiota magnífico. A matéria-prima da agiotagem, como sabeis, é o dinheiro... e dinheiro, com as amizades que tenho, seria canja conseguir. Tomaria, nos bancos, a 1% e emprestaria a 7%. Com o físico que Deus me deu (e quase tira), exigiria bons avalistas — do gabarito de Walter Moreira Salles para cima.

Deixa de besteira, Antônio. Vai trabalhar. Teu combustível é a preguiça. O "autêntico real, o cerne da tua filosofia", como disse Novalis. Não fosses tão preguiçoso, estarias ainda botando esterco, com as mãos, nos canteiros de cana da usina Cachoeira Lisa. Escreve, Antônio. Escreve sobre o Nada, suas causas e conseqüências. No Nada, por exemplo, há uma senhora nua, tocando cavaquinho. Um menino montado num leão. Uma cobra de salto alto. Fazer poesia é mais fácil do que carregar um piano — do que tocá-lo, como os dedos de Leon Fleisher. Para que chegues à poesia, basta que te aprisiones em ti mesmo e cuspas vigorosamente a face dos outros. O poeta tem que ignorar o próximo e odiar a si mesmo. (Palavra de honra, jamais escrevi frases tão estúpidas. Mas vão ficar, porque se retirá-las a crônica ficará menor.).

Passando do Nada ao Tudo. Isto é, voltando à realidade, telefonei para a rádio, a televisão, e soube que estava em greve. Eu estou em greve, meus amigos. Meus companheiros se batem por salários que não irão aumentar os meus e por um aumento de programação ao vivo, que só aumentará, em muito, minhas obrigações. És um homem lamentável, Antônio. Viva a greve!

23/11/1963

 Texto extraído do livro "Com Vocês, Antônio Maria", Editora Paz e Terra S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág. 215.

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