Texto de jurista contra mentiras na web faz sucesso nas redes sociais
Valter Uzzo (foto) traça cenário histórico do
domínio conservador na política brasileira para um amigo de infância e ganha
forte audiência na internet.
Um dos mais importantes especialistas do País na área trabalhista, o advogado Valter Uzzo criou um fato político ao enviar para amigos um e-mail remetido para um de seus conterrâneos da cidade de Pompeia, no interior de São Paulo, listando uma série de argumentos contrários à proliferação de spams jocosos sobre o ex-presidente Lula e a presidente Dilma Rousseff. Ex-presidente do Sindicato dos Advogados de São Paulo, Uzzo, no texto, descreve o cenário histórico sobre a presença e a influência das forças conservadoras na política brasileira.
O e-mail de Uzzo está sendo velozmente
disseminado pela internet, ganhando status de nobre peça política contra a
discriminação ideológica. Abaixo, o conteúdo:
Caros
Um amigo meu de infância passou a me mandar um volume enorme de e-mails com piadas, comentários e afirmações sempre depreciativas em relação ao Lula, Dilma, PT etc. A situação foi em um crescendo tal, que atingiu as raias da provocação e do insulto, até que, outro dia, resolvi responder. E mandei este pequeno texto, que é, em verdade, o que penso de pessoas como ele que, a pretexto de criticar, escondem hipocritamente suas ideias e concepções.
Abcs.
Valter Uzzo
Caro Lara:
Tenho, quase diariamente, recebido seus
e-mails, que trazem piadas, “fotos interessantes” e propaganda daquilo que,
politicamente, você acredita. Quero crer que estou me dirigido à pessoa certa,
ou seja, ao Lara que conheci em Pompeia, na infância e adolescência. Se assim é,
tenho algumas gratas recordações, de nossa convivência que, ao tempo, pela idade
e sem as agruras que viríamos a experimentar durante a vida, era muito boa.
Recordo-me mesmo que uma de suas habilidades, invejada por todos nós da mesma
classe ginasial, era a incrível capacidade que tinha de “colar”, já que você se
abastecia de um grande estoque das “sanfoninhas” (era o tipo de “cola” da
época), que escondia perfeitamente em sua mão direita e que lhe permitia –
grande perfeição! – colar sem interromper a escrita e – perfeição maior! – até
mesmo diante do olhar atento do professor. Ao que me recordo, nunca, nenhum dos
professores, na fiscalização que faziam, conseguiu algum êxito diante de você.
Nesse particular, você era imbatível.
Mas, deixando-se de lado tais reminiscências,
eu estou me dirigindo a você para tratar de assunto que, diante de sua volumosa
correspondência eletrônica, parece lhe interessar: trata-se de questões que
envolvem a visão que temos da forma como vem sendo dirigido este País, melhor
dizendo, a questão política. Para se ter uma conversa franca, devo dizer que
temos uma visão de mundo muito diferente. Acho mesmo, oposta. Em minha profissão
(sou advogado), acabei aprendendo a conviver na divergência, já que,
diariamente, senta do lado de lá da mesa de audiência, ou dos autos do processo,
um colega de mesmo grau de escolaridade que defende justamente o contrário.
Adversário. Mas, terminada a audiência, retomamos o relacionamento, ou seja, é
um aprendizado constante e permanente a nos ensinar que devemos respeitar os que
pensam de forma diversa.
Transposta tal relação para a política, também
aprendi a respeitar aqueles que tem uma visão de mundo diferente da minha,
embora com eles não concorde. Entre tais “adversários” de pensamento existem
dois tipos: os que assim agem por convicção e os que agem por interesse. Creio
que você se enquadra entre os primeiros, ou seja, você tem ideias, a meu ver,
que eu classifico como “conservadoras”, mas que são catalogadas no jargão
político comum como “reacionárias” ou por alguns “direitistas” ou, se formos
levar ao extremo a sociologia política, “fascistas”. Para mim, no entanto, você
é um “conservador”, por convicção. E é aí que eu quero conversar com você.
Existe no Brasil uma forte corrente de
pensamento conservador. Sempre existiu, aliás, durante o Império e durante a
República, todos os presidentes e governos, até 2003, sempre tiveram um perfil
conservador, uns mais outros menos. Todos. Getulio Vargas (1º governo, ditadura)
liderou uma “revolução” – que não era revolução no sentido sociológico do termo
– contra práticas condenáveis da República Velha, só isso. Pertencia à elite
agrária, era fazendeiro e fez um governo ambíguo, criando uma legislação
trabalhista (que estava sendo criada, ao tempo, por quase todos os países de
mesmo grau de desenvolvimento que o Brasil) e criou dois partidos políticos: o
PTB, para lhe servir; e o PSD, conservadoríssimo, para ajudá-lo a governar. No
mais, encarcerou a oposição e restringiu as liberdades públicas. Em 1945 foi
substituído pelo Dutra (outro conservador), que dissipou todas as reservas
cambiais que havíamos acumulado com a substituição das importações, durante a
guerra. Getulio volta em 1950 e aí, após um início de governo meio indefinido,
começa a aproximar-se de ideias progressistas, mas não conseguiu implementá-las,
já que, ameaçado de deposição, suicidou-se. Juscelino foi um inovador em
realizações, mas seu governo, embora aparentemente liberal nos costumes, sempre
foi um produto das classes dominantes e um fiel seguidor da política
norte-americana. Jânio se foi muito rápido e Jango também nada tinha de
progressista: era filho de uma família de riquíssimos fazendeiros, era
despreparado para a função e sua queda dá bem a medida de seus compromissos de
classe: preferiu viver rico no exílio, do que participar ou liderar uma
revolução popular com a qual não se identificava. Seguiram-se os governos
militares, Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique. Se examinarmos todas as
medidas tomadas por tais governos (algumas muito boas, até) veremos que nenhuma
delas teve a preocupação ou conseguiu alterar o sistema de distribuição de renda
no País, – um dos mais injustos do mundo. A dívida externa sempre em patamares
impagáveis, o salário mínimo mediando entre US$80,00 e US$120,00, lenta queda da
mortalidade infantil, poucos avanços na alfabetização, grande transferência de
rendas para o exterior, sistema de saúde pública catastrófico, destruição da
escola pública, gigantesca falta de moradias e favelização, polícia corrupta,
Justiça que não funciona, previdência privada mais cara do mundo, seguros mais
caros do mundo, alta tributação e assim foi. Só discursos, só demagogia, e muita
roubalheira.
Aí vieram a eleição em 2003, reeleição do Lula
e eleição da Dilma. Muitos erros, houve e há corrupção, muitas coisas não deram
certo, os quadros do PT, em grande parte, eram despreparados para administração,
enfim, as coisas não saíram como o PT pregava. No entanto, o salário mínimo
triplicou (em dólares), a renda familiar cresceu, a dívida externa foi paga, o
consumo aumentou muito, o emprego cresceu (e o desemprego despencou) e o Brasil
conseguiu crescer, ao meio de uma grande crise internacional.
Caro Lara, esses são fatos. Fato é fato, não é
discurso, nem proselitismo político, nem palavrório. FATOS. O País está em
regime de pleno emprego (é a 1ª vez em nossa história que isso acontece) e, no
ano de 2011, em um universo de 200 países, fomos o 4º país do mundo em receber
investimentos externos, só atrás dos Estados Unidos, China e Hong Kong (notícia
do Times, reproduzida noEstadão e Folha na semana passada, com pouco destaque).
A arenga de que o governo, em 2003, pegou uma condição internacional favorável é
conversa para boi dormir: muitos outros países não progrediram, muitos entraram
em crise, o sistema financeiro internacional em 2008 quase ruiu, enfim, o Brasil
navegou muito bem por sua conta e seus méritos. Pensar de modo diverso é
revolver à mentalidade colonialista.
Mas estou eu a pretender que você se torne um
apoiador do Lula e da Dilma? É claro que não, até porque na nossa idade ninguém
muda mais. É que eu acho que essa sua “cruzada” contra, poderia ser muito mais
consequente e séria. Já que na clássica definição “partido político é a opinião
pública organizada”, porque vocês, conservadores, não fundam um partido que
expresse tal ideologia? A grande farsa que existe é que os conservadores ou os
direitistas ou os neoliberais não assumem o próprio rosto. O PSDB (neoliberal)
não se diz neoliberal, diz que vai mudar, que é de centro-esquerda, que é
progressista e outras baboseiras mais. Por que não se diz neoliberal e faz um
programa neoliberal? E vocês, conservadores, por que não se assumem e fazem um
programa com o conteúdo daquilo que vocês acreditam: contra as cotas, contra o
aborto, contra o casamento gay, pela redução dos direitos trabalhistas, dos
impostos, por uma política externa mais invasiva etc. etc. tal qual o Partido
Republicano (conservador) dos Estados Unidos? Se você fizer as contas, aqui como
lá, o eleitorado se divide, o que, aliás, ocorre em todos países civilizados
(França, Inglaterra, Austrália, Itália, Espanha, Alemanha, Áustria etc. etc.
etc.). Ou seja, no mundo todo, o eleitorado se divide em conservadores e
progressistas. Mas aqui não, em razão da hipocrisia política da direita, a luta
não é limpa. Estimule a criação de um verdadeiro partido conservador, que
defenda as teses conservadoras e o modo de governar conservador e aí, sim,
teríamos um debate limpo, direto, sem enganações, sem subterfúgios. A meu ver,
essa situação da direita esconder suas verdadeiras propostas, de vestir um manto
progressista quando não o é, é a pior forma de trapacear uma nação, posto que
esconde seus verdadeiros desígnios. Em suma, já é tempo de sair do armário e vir
corajosamente para o debate de ideias.
O outro ponto que gostaria de conversar com
você é sobre a forma negativa e pejorativa de sua “crítica” política. As piadas,
imagens, dizeres etc., que se referem aos que não pensam como você, revelam um
rancor que tem de tudo: preconceito, desinformação, insultos etc. Se você acha
que este tipo de crítica desperta alguma simpatia para as suas ideias, ou fazem
mal à figura dos criticados, então está na hora de você fazer algumas reflexões
sobre o que muda as pessoas. Uma pessoa decente muda de opinião quando você
demonstra que ela está errada. Só não mudará se tiver “interesses” em se manter
no erro ou, então, se por alguma razão (preconceito, ignorância, intolerância,
irracionalidade etc.) não entender o seu erro e o significado da mudança. Fora
disso, a “propaganda” pejorativa contrária é um tiro na culatra. E isso é tanto
no aspecto individual como coletivo. O Lula cresceu eleitoralmente depois que
mudou sua imagem para o “Lula, paz e amor”. Antes, o eleitorado preferia o FHC,
com sua voz e modos blandiciosos. Serra com sua linguagem belicosa só perdeu
votos. Obama derrotou duas vezes os seus adversários com um discurso suave,
sofrendo agressões de todo os lados. O Berlusconi e Sarkozy, na Itália e França,
perderam as eleições, em razão de suas práticas autoritárias e arrogantes.
Enfim, à medida que a sociedade evolui, essa linguagem truculenta, ofensiva,
enganosa, que intui uma falsa moralidade e prega medidas radicais extremadas
(para os outros, nunca para si) vai caindo em desuso, não engana mais ninguém.
Pode ter servido em outra época, chegou a levar os hitlers e mussolinis ao
poder, mas, hoje em dia, ninguém mais cai neste canto de sereia. As pessoas
querem é ser convencidas, sem imposições.
Bem, fico por aqui. Se você quiser prosseguir
mandando-me os e-mails, gostaria que não mais me enviasse os relativos à
política, a não ser quando nesta terra tiver um partido conservador ou
direitista ou de natureza fascista (o Plínio Salgado pelo menos teve coragem e
honestidade criando os “camisas verdes”), para que se possa ter um debate
decente e honesto. Daí sim, quem sabe, talvez até eu me convença de que existe
alguma verdade nessas ideias trapaceadas e escondidas sob o manto de uma falsa
moralidade. Ideias tão escondidas, tal como você fazia com as colas e era
invejado por toda classe.
Abraços e saudades
Valter Uzzo
PS.: Se você não é a pessoa que eu penso, peço
desculpas.
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