domingo, 28 de dezembro de 2014

O TREM E O CAFEZINHO

Por José de Oliveira Ramos
(zeoliveira43ramos@gmail.com)


Trem das sete
(Raul Seixas)

Ói, ói o trem,
vem surgindo de trás das montanhas azuis,
olha o trem
Ói, ói o trem,
vem trazendo de longe as cinzas do velho aeon
Ói, já é vem,
fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem
Ói, é o trem,
não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem

 Café na caneca


Como se fosse comandado pela precisão londrina, exatamente às 08:14 horas de todos os dias, chovesse ou fizesse sol, o trem que fazia a linha Cidade Alta-Munduba, encostava na estação ferroviária de “Serra da Raposa”, onde deixava passageiros e cargas e recebia outros tantos. Nesta estação, havia anos, o movimento maior era no desembarque de passageiros e de cargas. A organização de tudo dava a falsa ideia de lentidão. Mas tudo acontecia de forma cronometrada, da chegada à nova partida.
A noite da segunda-feira fora diferente na casa de Cristino e Doralice. Tudo por conta dos preparativos para a viagem na manhã do dia seguinte. Doralice, em dias próximos de parir o quarto filho do casal, precisava deixar tudo preparado para os filhos menores – sob a guarda de Nato, o mais velho, de apenas 13 anos – passarem pelo menos dois dias sem a presença dela durante o “resguardo”.
O percurso entre a casa de Cristino e Doralice e a estação do trem não era tão distante assim. Embora caminhando de forma lenta, em virtude do avançado estado da gravidez, Doralice faria esse percurso num máximo de 15 minutos.
- Vumbora hômi, que o trem num ispera! Disse Doralice para Cristino, que se apressou na arrumação do matulão cheio de “catrevagens”, ainda que não fosse usa-las na cidade grande.
Cientes de que nada ficara errado, os dois se despediram dos meninos e partiram para “Serra da Raposa”. Mal sabiam que o destino os pararia por alguns minutos na casa do compadre Manel e da comadre Isabel.
- Entrem, façam o favor. Se abanquem. Pra onde vocês vão levando essa barriga enorme? Indagou Isabel.
- Eu vou pra cidade, parir, Comadre Isabel!
- E vai de trem, nesse sacolejar todo?
- É o jeito, Comadre! Afirmou Doralice.
- Apois espere só um minutinho enquanto eu apreparo um cafezinho procês!
- Num carece não Comadre, apois eu tenho medo de me atrasar e perder o trem! Lembrou mais uma vez Doralice, preocupada com a demora.
- Conversa, mulé. Eu faço rapidinho! Garantiu Isabel.
Da casa de Manel e Isabel para a estação “Serra da Raposa” ninguém gastaria mais que cinco minutos para percorrer a distância. Mas, conversa vai, conversa vem, e, quando Cristino e Doralice deram por conta, faltavam apenas 3 minutinhos para as 08:14 horas.
Caminhando o mais rápido que puderam, Cristino e Doralice ainda conseguiram ver o último vagão do trem sumir na curva a caminho da Cidade Alta. Perderam o trem. Perderam a hora e o jeito foi retornar para casa e retomar a rotina diária e tentar a viagem na manhã do dia seguinte.
- Tomara Deus esse menino num se apresse! Suplicou Doralice.
A continuação da rotina diária acabou levando Cristino de volta para a roça, enquanto Doralice recompunha a vida com os três filhos e retomava os afazeres domésticos.
De noite, com Cristino já em casa, a mesa foi posta para o jantar. Doralice ainda teve tempo de falar com um dos filhos:
- Bibiu, meu filho, adispois que você botar o dicumê do gatinho, ligue a televisão.
E foi exatamente no horário do noticioso local, que o apresentador do telejornal, com voz pausada anunciou:
- Trem descarrilha na manhã de hoje, no trecho entre a estação “Serra da Raposa” e o município de Botuquinha, e causa desastre pavoroso. Todos os 49 passageiros que estavam nos vagões a caminho da Cidade Alta, faleceram.
- Meu Deus, que horror! Disse Doralice.
- Abençoado seja sempre o seu cafezinho, Comadre Isabel! Bradou alto Cristino!

(Matéria também publicada no ACERVO do jornalista Mhario Lincoln)

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