Por Mhario Lincoln
"O descaso e até o escárnio do governo brasileiro com os direitos constitucionais dos povos indígenas é assustador", diz o bispo Erwin Kräutler/Bispo do Xingu/Presidente do Cimi (foto).
"O atual governo ao favorecer abertamente os ruralistas mostra-se
intransigente para com os povos indígenas e quilombolas. Não aceita
diálogo com líderes indígenas e rejeita qualquer questionamento ou
crítica aos seus planos e projetos desenvolvimentistas. Essa postura
arrogante estimula a perseguição e as violências contra os povos
indígenas", afirma D. Erwin Kräutler, bispo do Xingu e presidente do
Conselho Indigenista Missionário - CIMI, em pronunciamento feito na
Assembleia Nacional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB,
em Aparecida do Norte, no dia 22-02-105.
Segundo ele, "nos dois últimos anos assistimos a um verdadeiro
“levante” contra os povos indígenas e quilombolas e seus direitos
fundamentais à vida e à terra. As investidas se deram no âmbito político
junto aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, mas também na
mídia através da veiculação de notícias que provocam inquietação
social".
Eis a íntegra do pronunciamento.
INTRODUÇÃO
“Prontos a dar razão da esperança” 1 Pd 3,15
Tomo mais uma vez a liberdade de descrever o avanço da dura e
conflitiva realidade dos povos indígenas no Brasil. Faço-o no intuito de
não apenas relatar atos e omissões, dados e números, mas sim de tocar o
coração dos pastores e de todos os homens e mulheres da nossa Igreja.
Volto a repetir o que o Dr. Rubens Ricupero falou na aula que deu a essa
Assembleia Geral sobre a atual conjuntura político-social: “A sociedade
brasileira será julgada pela maneira como trata os mais fracos e
frágeis”. Importa conhecer de perto esses “fracos” e “frágeis” e mais
ainda as causas e os motivos de sua vulnerabilidade. São sempre pessoas
de carne e osso. E entre elas sobressaem os indígenas, os
verdadeiramente autóctones deste país maravilhoso. Já milhares de anos
atrás seus antecedentes longínquos habitavam esse continente[1]. Muitos
têm sobrenomes que identificam o povo a que pertencem. São mulheres e
homens, crianças, jovens, adultos, idosos, feitos à imagem e semelhança
de Deus (cf. Gn 1,27) a quem são negados os direitos fundamentais à
vida, às suas terras ancestrais e de serem diferentes em seus costumes e
tradições, culturas e línguas.
Ouço
e interpreto o apelo de nosso Papa Francisco na Bula que proclama o
Jubileu Extraordinário da Misericórdia “Misericordiae Vultus” também no
contexto dos povos indígenas: “Abramos os nossos olhos para ver as
misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da
própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de
ajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para
que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o
seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de
indiferença que frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia
e o egoísmo” (MV 15).
BRASIL, PÁTRIA DOS POVOS INDÍGENAS?
Não relato fatos do passado, mas acontecimentos que ocorrem nestes
dias. Tento mostrar o calvário de 305 povos indígenas tratados como
estrangeiros em seu próprio país e acusados até de usurpadores de suas
terras tradicionais ou então de invasores de propriedades produtivas[2].
Apesar dos duros golpes que sofreram e continuam sofrendo, a
esperança de que um dia o sonho da Terra sem Males se torne realidade,
não desvanece. É o sonho de um mundo justo, fraterno e solidário, onde
todos podem viver em harmonia com a criação de Deus e seus semelhantes. A
busca da realização deste sonho não deixa de ser parte intrínseca do
Objetivo da CNBB, pelo menos a partir de sua 17ª Assembleia em 1979[3]
que se inspirou na III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano
em Puebla.
O descaso e até o escárnio do governo brasileiro com os direitos
constitucionais dos povos indígenas é assustador: “O Brasil não tem
ideia da riqueza humana e cultural que se perde ao insistir em uma
política que não se cansa de tentar transformar índios em pobres,
‘integrados’ às levas de marginalizados que ocupam as periferias das
grandes cidades” escreveram Maria Rita Kehl e Daniel Pierri por ocasião
do Dia do Índio, 19 de abril, na Folha de São Paulo[4]. Apesar de nossa
Constituição Federal reconhecer o direito às terras que povos indígenas
ocupam, o governo não as demarca, ou, quando as demarca, não as
homologa. O Artigo 231 da Constituição Federal de 1988 determina: “São
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens“. A terra, para estes povos, não se
reduz à mera mercadoria ou a um bem a ser explorado até a exaustão. É a
“mãe gentil” cantada e decantada em nosso Hino Nacional. É seu espaço
vital, o chão de seus ritos e mitos, o território de suas lutas
históricas pela sobrevivência.
Em alguns estados há constantes investidas contra as terras
demarcadas ou a serem demarcadas. De ano em ano crescem as violências
contra comunidades e lideranças indígenas, especialmente aquelas que
vivem às margens de rodovias ou estão encurraladas em reservas
reduzidíssimas. O setor ruralista não se cansa em articular, em todo o
país, ações de intimidação e de coerção dos povos indígenas e dos
quilombolas.
A SUBSERVIÊNCIA DO GOVERNO AO AGRONEGÓCIO
Nas relações do governo com seus “aliados”, salta à vista a perigosa
subserviência aos ruralistas que vêm revelando sempre mais sua face
depredadora dos recursos da natureza, como a destruição de florestas e
de matas ciliares, e a poluição de mananciais de água. Em muitos casos
se valem ainda da exploração da mão de obra humana, submetendo
trabalhadores a condições análogas à escravidão. É bom lembrar que
muitos dos que se autodenominam hoje de “proprietários” adquiriram suas
posses através da força bruta, expulsando famílias e povos, ameaçando e
assassinando lideranças ou então adquirindo terras a preços irrisórios e
promovendo a grilagem ou recebendo, a preço simbólico, terras do poder
público.
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