Sebastião Nery
RIO – Macunaíma
não é brasileiro, é venezuelano. Quem me ensinou foi o então embaixador do
Brasil em Caracas, Renato Prado Guimarães, jovem e competente que lá me deu
inesquecíveis lições.
Teodor Koch Grumberg, um alemão aventureiro que se meteu
pela floresta amazônica no princípio do século, publicou em Berlim, em 1917, em
cinco volumes, a história de suas viagens: “De Roraima ao Orinoco”.
Recolheu lendas da região,
inclusive a de “Urariquera” e suas peripécias. Nosso Mário de Andrade, culto e
gênio, leu Grumberg no original e mudou “Urariquera” para “Macunaíma”, mito,
herói e retrato de nossos povos irmãos.
O brasileiro tem, com o venezuelano, uma marca
hereditária fundamental: além de descendentes de europeus e negros, somos
filhos de índios da planície, bem diferentes dos índios das montanhas. O índio
amazônico não está preso às geleiras dos Andes, amarrado a caminhos ínvios. É o
índio livre, solto, nômade, da planície. Isso distingue e diferencia
brasileiros e venezuelanos dos outros povos da América andina. A jovialidade, a
alegria, a musicalidade, a extrema facilidade de comunicação, uma abertura
irresistível para o exterior, tudo isso são coisas muito nossas e deles, muito
iguais. Você entra em um avião, sai pela América Central, pelo Caribe, e logo
percebe quando há brasileiros ou venezuelanos: sempre mais alegria, barulho e
graça a bordo. E as mulheres, modéstia à parte, irresistivelmente mais belas,
mais charmosas. É o caminhar liberto de “urariquera”, aliás “Macunaíma”, na
floresta sem neve e sem fronteiras.
Se houvesse neve e a floresta fosse branca e esquálida na
infinita “taigá”, ali seria a Sibéria deles. Como é a grande savana, cercada da
floresta tropical, com rios gordos e revoltos, é mesmo a Amazônia da Venezuela.
Na Sibéria vi a mais grandiosa obra humana de ocupação planejada de uma região
deserta, solitária. No Orinoco vi o maior projeto de industrialização e
desenvolvimento na Amazônia continental. E sem destruí-la. Como sabemos pouco e
mal de nossos irmãos latino-americanos! Eu que pensava conhecer quase o mundo
inteiro, só então descobri que, na Venezuela, São Paulo fica na Amazônia.
A região se chama Guayana. O Estado, Bolívar. A capital
administrativa, também Bolívar. A capital industrial, Guayana. A cidade
moderna, planejada, avenidas largas, arborizadas, como Brasília, Puerto Ordaz.
Mas quem dá vida, e alma, e seiva, e riqueza a mais de 50% do território do
país é um rio, sagrado como o Nilo, unitário como o São Francisco, generoso
como Amazonas, o Orinoco, engordado pelos afluentes Caroni e Apure. Os números
são grandiosos, amazônicos. Limitada ao norte pela Cordilheira da Costa e a
Oeste pela Cordilheira dos Andes, a bacia do Orinoco, ao sul e a leste,
praticamente coincide com os limites políticos do país. Fora as vertentes das
duas cordilheiras, 80% do território venezuelano correspondem à bacia do rio,
um território de mais de 700 mil km2, com apenas 20% da população. A região da
Guayana, com 45% do território do país, tem só 3% da população total. O Orinoco
é uma imensa coluna vertebral de oeste a leste, 1200 quilômetros, e, com os
afluentes, 3 mil quilômetros navegáveis, com possibilidade de integração ao
Amazonas e ao Prata. E embaixo petróleo, muito petróleo.
Que sempre foi a ventura e a desventura da Venezuela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Este blog só aceita comentários ou críticas que não ofendam a dignidade das pessoas.