No município alagoano de Piaçabuçu, a 135 quilômetros de
Maceió, tomar um simples cafezinho pode ser um evento difícil de engolir. “Já
experimentou o nosso café, moça?”, perguntou à reportagem o pescador Marcos
Antônio Batista dos Santos, 39. Ele atribui o estranho sabor da bebida à
qualidade da água que abastece a cidade de cerca de 18.000 habitantes. “Aqui,
água para beber e cozinhar, só comprando água mineral. Você precisa ver o gosto
do café como fica [com a água da torneira fervida]”, diz.
A cidade fica na foz do Rio São Francisco, que nasce na
Serra da Canastra, em Minas Gerais. Ao longo de seu curso, o Velho Chico, como
é chamado, está sendo castigado por uma seca histórica. Por isso, desde 2013,
sua vazão vem sendo reduzida paulatinamente. O efeito cascata desta crise
hídrica é que, devido à redução do nível do rio, a água do mar avança com cada
vez mais força leito adentro, resultando no fenômeno da salinização da água.
Como a cidade de Piaçabuçu é totalmente abastecida pelo rio, a água salgada
acaba se tornando um problema que ultrapassa o indigesto cafezinho. “Além de
uma questão hídrica, existe um problema de saúde pública”, afirmou Anivaldo
Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco.
Agentes de saúde e a própria população acreditam que
casos de hipertensão e problemas de pele e nos rins que afetam os moradores do
local estão aumentando em consequência da água salobra. “Ainda não há dados que
confirmem, mas existe uma estimativa de aumento de 20% nos casos de hipertensão
neste ano, pelo aumento da salinidade da água”, diz Gênisson Branco,
coordenador do hospital da cidade, a Casa Maternal de Piaçabuçu, e técnico em
enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). De acordo com ele, além
da hipertensão, a hipernatremia (alta concentração de sódio no corpo) e doenças
de pele são as enfermidades mais comuns atribuídas à qualidade da água.
A salinização também está trazendo consequências para a
agricultura local, segundo Miranda. “Algumas plantações de arroz e coco,
alimentos muito cultivados na região, se tornaram impraticáveis”, explica. A
alta concentração de sal na água utilizada na irrigação destrói os cultivos.
A aposentada Iraíris dos Santos Silva, 83, sabe bem do
que Miranda está falando. “Antes, havia feira aqui todo sábado e domingo, o dia
inteiro”, conta ela, enquanto olha para o rio. “Agora, é só no sábado e até
meio dia. Não tem mais o que vender né?”. Ela veio de Pão de Açúcar, no sertão
alagoano, a 200 quilômetros dali, fugindo da seca e para trabalhar em uma
plantação de arroz. “A plantação já nem existe mais”, contou. A seca, esta sim
persiste.
De acordo com Clécio Falcão, presidente da Companhia de
Saneamento de Alagoas (Casal), a água distribuída para a cidade pela companhia
é tratada e própria para ser tomada. “Esta reclamação [sobre a água salgada e
os casos de hipertensão] não está sendo feita por causa da água disponibilizada
pela Casal”, disse. “Eles devem estar captando água direto do rio, porque a
água da Casal tem um controle rigoroso”. De acordo com ele, o problema não é a
qualidade da água distribuída, mas sim a escassez. Isso porque a distribuição é
feita somente por 12 horas diárias, quando a maré está baixa, e a quantidade de
água salgada no rio é, consequentemente, menor. Segundo ele, quem não tem caixa
d’água em casa, quando o abastecimento é interrompido, acaba retirando água
diretamente do rio, aumentando as chances de problemas de saúde. O problema é
que somente 60% da população têm caixa d’água, segundo os cálculos de Falcão.
Na tentativa de remediar o problema, a Casal afirmou, em
agosto ao portal UOL, que distribuiria 1.000 caixas d´água para a população que
não tinha este equipamento. Questionado pelo EL PAÍS se de fato a promessa foi
cumprida, Clécio Falcão afirmou que a ideia foi “revista” e chegaram à
conclusão de que o plano não era viável. “Depois que fizemos a vistoria no
bairro de Paciência [que segundo ele é a região mais carente da cidade],
chegamos à conclusão de que era inviável porque falta estrutura nas casas para
estes reservatórios”, explicou.
Mas João Suassuna, engenheiro agrônomo, especialista em
semiárido e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, diz que a maré baixa não é
garantia de qualidade. “Sempre ficam resíduos de sal”, diz. “Não é porque a maré
está baixa que o rio está com água de boa qualidade”, alerta.
Para driblar a água salinizada, a captação é feita a uma
distância de 12 quilômetros do mar. Após perceber que distribuir caixas d´água
não resolveria o problema, a Casal afirma estar atuando em duas novas frentes.
A primeira é ativar uma nova captação rio acima, para tentar fugir da água
marinha. A nova distância ficaria a 20 quilômetros do mar. Segundo Clécio
Falcão, a expectativa é que a obra fique pronta até o final do ano. “Com esta nova
captação, provavelmente poderemos aumentar o número de horas do bombeamento,
talvez até voltar para as 24 horas de captação”, diz. “Mas isso vai depender do
comportamento do rio e se a vazão continuará nos 550 metros cúbicos por
segundo. Porque se a crise hídrica continuar e se a Chesf obtiver uma nova
autorização da ANA [Agência Nacional de Água] para reduzir ainda mais a vazão,
a gente não garante que esta nova captação consiga captar por 24 horas".
A segunda iniciativa será construir uma espécie de
"reservatório pulmão", cujo projeto está sendo desenvolvido pelo
Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco. "Acredito que se tudo
ocorrer bem, em cinco meses já teremos isso resolvido", diz Anivaldo Miranda.
A proposta é que o reservatório tenha dimensões capazes de suprir a cidade
inteira.
"Farra da água"
Em 2013, quando o problema da seca se iniciou com mais
intensidade, a vazão do rio São Francisco praticada pelos reservatórios de
Sobradinho, na Bahia, e Xingó (entre Alagoas e Sergipe) era de 1.300 metros
cúbicos por segundo. Paulatinamente ela foi sendo reduzida até o que é hoje,
550 metros cúbicos por segundo. A Companhia Hidrelétrica do São Francisco
(Chesf), responsável pela vazão, afirmou, por meio de sua assessoria de
imprensa, que estas reduções permitiram poupar o equivalente a 150% do volume
útil do reservatório de Sobradinho. Mas, apesar da economia, Sobradinho está,
neste momento, com somente 3,5% de seu volume útil.
A companhia não respondeu se há previsão de uma nova
redução da vazão em breve. Disse, via assessoria de imprensa, que a salinização
é um "fenômeno natural" que ocorre "independentemente da ação
humana". Mas reconhece que há uma relação da "cunha salina com a
vazão de um rio e com diversos outros fatores naturais", e que "desde
o ano de 2013, a bacia do rio São Francisco vem apresentando um quadro
hidrológico bastante desfavorável".
Anivaldo Miranda, Comitê da Bacia do São Francisco,
ressalta que, mais do que uma questão climática, existe também um problema
administrativo. “É uma questão de crise de gestão e não só uma questão
hídrica”, afirma. “Todo mundo fala do clima, mas isso já estava previsto. Estão
fazendo a farra da água em muitos pontos da bacia e isso se reverte na vazão do
São Francisco”, afirma.
Os projetos para atenuar o problema em Piaçabuçu são,
porém, medidas paliativas. João Suassuna alerta que, não há medidas a médio e
curto prazo. "Não há um plano B para o problema da seca. Temos que cuidar
da revitalização da bacia imediatamente", diz. "Faz mais de 20 anos
que denunciamos essas coisas. A natureza se vinga e está se vingando
agora".
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