quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Artigo do Dr. Gismair Martins Teixeira, Pós-Doutorando em Ciências da Religião

O imaginário espírita e os bastidores da covid-19 

Gismair Martins Teixeira*

O imaginário se constitui como um dos campos de pesquisa mais fecundos das últimas décadas na cultura como um todo. Jean-Paul Sartre, Gaston Bachelard e Gilbert Durand, dentre outros, se apresentam como nomes importantes dessa área de conhecimento em nível mundial. Naturalmente, discordam entre si em determinadas abordagens como, por exemplo, na percepção sartreana da imaginação como sendo a louca da casa no âmbito da teoria do conhecimento, numa postura remanescente de paradigmas já considerados ultrapassados em muitos aspectos, como o positivismo.

Em seu tratado em torno do imaginário, intitulado “As estruturas antropológicas do imaginário”, Gilbert Durand contesta de forma veemente a postura de Sartre, estabelecendo toda uma constelação de símbolos sobre essa riquíssima faculdade humana, que teria instigantes contribuições a fazer na teoria do conhecimento em sua ampla perspectiva. A definição durandiana para o tema é de que ele, o imaginário, é formado pelo “conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens”. No contexto dessa definição, todas as instâncias culturais possuem o seu imaginário particular que, naturalmente, dialoga com os demais em maior ou menor escala.

O espiritismo naturalmente se configura, pois, como um imaginário, já que conta com uma significativa gama de imagens relacionais que lhe são próprias e que dialogam com outras instâncias imagéticas. Uma das imagens espíritas que povoam a cultura como um todo, em particular a brasileira, é a que recebe a denominação de psicografia, em que um espírito se utiliza das mãos de um indivíduo designado de médium para escrever através dele, instaurando o que poderia ser definido como “gênero parapoético”, observadas as peculiaridades epistemológicas em torno do termo “poética”.

Além da parapoética, o imaginário espiritista apresenta em sua formação o dialogismo intertextual e comparatista com o universo da produção literária em várias de suas frentes, dentre as quais a que dialoga com o problema da queda espiritual da tradição teológica e sua localização em hábitats infra e supraterrenos. Em seu importante clássico historiográfico “O Nascimento do Purgatório”, o historiador francês, Jacques LeGoff, registra que “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, pode ser compreendida como sendo a certidão de nascimento literário da doutrina do purgatório assumida pela igreja católica no período medieval.

Publicada no século 14, a obra de Alighieri é caracterizada pela mística cristã do medievo, de cuja estrutura teológica se forjou o conceito do purgatório, que guarda singulares correspondências em sua origem, em termos de fenômenos paranormais, com a fenomênica mediúnica que preparou a sistematização do espiritismo por Allan Kardec na segunda metade do século 19, conforme registra a historiadora Mary del Priore sobre o advento do espiritismo em sua obra “Do Outro Lado: A História do Sobrenatural e do Espiritismo”.

No âmbito da literatura comparada, por sua vez, “A Divina Comédia” dialoga em nível de intertextualidade com “Paraíso Perdido”, de John Milton, outro clássico do Ocidente, que traz em sua composição a perspectiva protestante de seu autor para o problema da queda dos anjos e a queda do homem. Lúcifer, o anjo mais formoso da corte celestial, na visão de Milton, cai por inveja a Jesus Cristo, a quem Deus honra sobremaneira entre todos os seres celestes. A queda do anjo e dos seus seguidores formará em ambiente extrafísico o inferno, de que a duras penas Lúcifer se evadirá para tentar as novas criaturas constituídas por Deus no Éden.

A PARAPOÉTICA E A PANDEMIA

A certidão de nascimento literária do espiritismo é a obra “O Livro dos Espíritos”, publicada por Allan Kardec em 18 de abril de 1857. Composta do diálogo entre Kardec e o mundo espiritual em reuniões mediúnicas de pesquisa, a obra é formada por pouco mais de mil perguntas dirigidas pelo pesquisador ao mundo espiritual, que respondia através da técnica psicográfica; ou seja, os espíritos respondiam escrevendo pelas mãos dos médiuns.

À época, a principal referência cultural do Brasil era a França. Logo, a doutrina chegou ao país, aclimatando-se aqui e desenvolvendo-se de maneira surpreendente. O Brasil se mostrou propício ao espiritismo e à popularização da mediunidade de diversos gêneros. No início do século 20, nasceria Francisco Cândido Xavier, que se tornaria célebre por seus dotes psicográficos, respondendo por mais de 400 obras psicografadas do mundo espiritual que enriqueceram a bibliografia espírita. Dentre os autores espirituais psicografados por Xavier se destaca André Luiz, cujas obras descrevem a vida espiritual em minudências e detalhes até então inéditos.

À semelhança de André Luiz, o autor espiritual Manoel Philomeno de Miranda também traria notícias de detalhes da vida no além em diversas obras, descrevendo em suas narrativas o constante conflito entre o bem e o mal, num dialogismo literário com Dante e Milton. O médium responsável pela psicografia de Philomeno de Miranda é Divaldo Pereira Franco, que possui uma respeitável folha corrida no contexto do espiritismo, conforme se pode observar do trabalho da jornalista Ana Landi, que biografou o médium. Nascido em Feira de Santana, Bahia, em 1927, Divaldo Franco possui pouco mais de 250 livros psicografados, tendo realizado milhares de conferências em dezenas de países e na ONU, além de dirigir vasta obra social em Salvador que é reconhecida em importantes organismos internacionais.

Do currículo do médium constam ainda títulos de doutor honoris causa por universidades do Brasil e do exterior. A última obra psicografada por Franco, intitulada “No Rumo do Mundo de Regeneração”, traz a singular narrativa em torno das atividades espirituais que se desenrolam nos bastidores do atual momento planetário, marcado pela pandemia da Covid-19. Publicada no último dia de 2020, a obra parapoética da parceria de Manoel Philomeno de Miranda e Divaldo Pereira Franco certamente desperta a curiosidade de quem gostaria de saber como o mundo dos espíritos estaria vendo o grande problema com que a humanidade se vê a braços.

Em 20 capítulos, o autor espiritual relata os bastidores espirituais do grave momento. Assim como Alighieri apresenta a divisão tripartite do mundo espiritual em inferno, purgatório e paraíso, Miranda informa sobre os diversos estratos do mundo espiritual, caracterizados pela similaridade de seus habitantes. As almas dotadas de nobres aspirações se reúnem em comunidades citadinas que objetivam, além da própria evolução, auxiliar o ser humano encarnado no mundo. Outras há, no entanto, onde a preocupação básica é a manutenção da ignorância, da perversidade, do egoísmo, enfim; estas se voltam para a humanidade encarnada com uma perspectiva bastante semelhante à dos demônios da tradição teológica.

“No Rumo do Mundo de Regeneração” descreve analiticamente uma autêntica batalha espiritual que se realiza no atual contexto pandêmico. As regiões abismais do mundo espiritual promoveram, segundo o autor espiritual, uma invasão em massa, aproveitando-se do doloroso quadro trazido pela pandemia da Covid-19 para instaurar ou amplificar o medo, o pânico, a depressão, a violência nos lares e fora dele, num sinistro e dantesco quadro. As regiões celestiais, por sua vez, intercedem com a finalidade de evitar ao máximo a consequência da perversa invasão. O coração e a mente do ser humano são o campo de batalha em que as duas correntes se defrontam.

De permeio a essa guerra, Philomeno de Miranda vai apresentando, nos diversos casos que são relatados, a maneira como a filosofia de vida de indivíduos e coletividades servem de base para a vitória tanto de um quanto de outro lado. A atual pandemia representaria, portanto, no contexto geral de “No Rumo do Mundo de Regeneração”, a materialização do ódio com que a humanidade nos últimos tempos tem se deixado embalar através de disputas ideológicas radicais e deprimentes em suas práticas em todos os estratos sociais, negligenciando a figura de Jesus e seus ensinamentos.

*Gismair Martins Teixeira - Pós-Doutorando em Ciências da Religião; Doutor em Letras e Linguística; professor e pesquisador.

Publicação do jornal online A Redação


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