quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Cerrado, conservação, desenvolvimento e pesquisa - artigo de Maria Clorinda Soares Fioravanti


Cerrado, conservação, desenvolvimento e pesquisa

Maria Clorinda Soares Fioravanti*

O Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul, ocupando área de 2.036.448 km², cerca de  22%  do  território  nacional.  É o único bioma sul americano a limitar-se com vários outros biomas: ao norte com a Amazônia; ao nordeste e a leste, com a Caatinga; a sudeste, com a Mata Atlântica e a sudoeste, com o Pantanal. Abrange os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal, além dos enclaves no Amapá, Roraima e Amazonas. Apontada como nova fronteira agrícola  do país, a região do Matopiba, sigla que envolve o Cerrado do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, se tornou o principal motor do desmatamento do país nos últimos anos, devido à expansão do agronegócio, respondendo por mais de 80% do desmate do bioma.

O Cerrado é uma das regiões de maior biodiversidade do mundo e, ao lado da Mata Atlântica, é considerado um dos hotspots mundiais, ou seja,  um dos biomas  mais  ricos e ameaçados do mundo. Neste território encontram-se as nascentes das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul (Amazônica/Tocantins, São Francisco e Prata) e esses grandes aquíferos representam cerca de 8% da disponibilidade  de água do país.  O   desmatamento   intenso    tem    provocado o assoreamento das áreas das bacias hidrográficas,  acarretando contaminação das águas, principalmente em virtude do uso excessivo de agrotóxicos nas plantações.

A devastação e a perda da biodiversidade já é uma  realidade  que  assola  o  Cerrado. Em  cinquenta   anos,   a   vegetação   original foi reduzida em 50%, sendo 30% da área destinada para pecuária. Hoje é o bioma que mais concentra atividades agropecuárias. Essa ocupação iniciou-se no ano de 1970, quando o governo passou a estimulá-la  alegando  que  as  suas  características  eram  propícias ao desenvolvimento agrícola e à produção pecuária.

Apesar do reconhecimento de sua importância biológica, dentre os hotspots mundiais, o Cerrado é o que possui a menor porcentagem de áreas sobre proteção integral, pois somente 8,21% de seu território estão legalmente protegidos  por  unidades de conservação; desse total, 2,85% são de proteção integral e 5,36% de uso sustentável, incluindo RPPNs (0,07%). Inúmeras espécies de plantas e animais correm risco de extinção. Estima-se que 20% das espécies nativas e endêmicas já não ocorram em áreas protegidas e que, pelo menos 137 espécies de animais, estão ameaçadas de extinção. Depois da Mata Atlântica, o Cerrado é o bioma brasileiro que mais sofreu alterações com a ocupação humana. É importante salientar que, além dos aspectos ambientais, o Cerrado tem grande importância social. Muitas populações sobrevivem de seus recursos naturais, incluindo etnias indígenas, quilombolas, geraizeiros, ribeirinhos, babaçueiras, vazanteiros e comunidades quilombolas que, juntas, fazem parte do patrimônio histórico e cultural brasileiro, que detêm o conhecimento tradicional de sua biodiversidade.

É preciso conciliar a necessária proteção ao bioma com o desenvolvimento agropecuário e a produção de alimentos, o que passa pela necessidade de desenvolvimento de pesquisas e de tecnologias apropriadas.

As universidades e os institutos  de pesquisa da região Centro Oeste têm desenvolvido inúmeras atividades que se concretizaram sob a forma de institutos, redes de pesquisa, projetos colaborativos, subsídios para a criação de áreas de preservação, entre outras iniciativas, que têm resultado na produção de vasto conhecimento científico

O cerrado é uma das regiões de maior biodiversidade do mundo e, ao lado da mata atlântica, é considerado um dos hotspots mundiais, ou seja, um dos biomas mais ricos e ameaçados do mundo.

Sobre o Cerrado. Entretanto, o bioma ainda não conta com uma Unidade de Pesquisa específica vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Segundo o Decreto nº 10.463, de 14 de agosto de 2020 na estrutura regimental do MCTI, existem 16 (dezesseis) Unidades  de  Pesquisa, às quais competem à geração, aplicação e disseminação de conhecimentos, bem como o desenvolvimento de tecnologias e a promoção da inovação em suas respectivas áreas de atuação. Biomas como Amazônia, Caatinga e Mata Atlântica já contam com suas unidades de pesquisa, mas não o Cerrado.

Esse é um momento decisivo para essa iniciativa, pois a redução da cobertura vegetal dos biomas brasileiros, principalmente da Amazônia e do Cerrado, figura como um dos maiores problemas ambientais do país e tem despertado o interesse mundial, podendo refletir de maneira negativa nas possibilidades de desenvolvimento econômico e social.

A queda do desmatamento na Amazônia no primeiro semestre de 2023 indica uma tendência relevante de redução da atividade. Enquanto a alta de desmatamento no Cerrado mostra o enorme desafio para a preservação desse bioma. Segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), 33,6% foi quanto o desmatamento na Amazônia caiu no primeiro semestre de 2023, em comparação com o mesmo período em 2022, já no Cerrado o desmatamento cresceu 21% no mesmo período.

Nunca é demais lembrar que a Amazônia e o Cerrado são os dois maiores biomas do Brasil, com papel importante na oferta de água e no combate à mudança climática. Apesar do otimismo quanto à queda no desmatamento na Amazônia, os dados no Cerrado preocupam governo e sociedade civil. Essa diferença nas taxas de desmatamento deve-se a distinções na legislação ambiental brasileira. Os dados não fazem distinção entre desmatamento legal e ilegal, mas as ações governamentais precisam ter claro essa diferença, pois enquanto o desmatamento criminoso pode ser reprimido por órgãos como o IBAMA, o legal não é atingido por esse tipo de ação. Enquanto o Código Florestal protege 80% da mata localizada  em áreas privadas na Amazônia contra o desmatamento, as reservas legais cobrem apenas de 20% a 35% do Cerrado. Ou seja, a lei estabelece uma proporção quase oposta para os dois biomas. Ao mesmo tempo, apenas 8,21% da área total da savana estão legalmente protegidas com unidades de conservação, contra quase metade da floresta do norte. Essa diferença na legislação e nos maiores esforços para combater o desmatamento na Amazônia, não guarda coerência do ponto vista científico, pois os dois biomas estão fortemente relacionados e dependem um do outro para sobreviver.

O Cerrado pode e deve continuar a ser um grande produtor do agronegócio, porém sem comprometer o meio ambiente. Para isso é urgente adotar medidas que otimizem o uso da terra na região (incentivando, por exemplo, o uso de áreas já degradadas, em vez de derrubar áreas intactas), mudar a gestão dos recursos hídricos, desenvolver sistema sustentáveis de produção, para citar alguns exemplos. Para que essas medidas tenham sucesso, mais e melhor conhecimento científico e tecnológico precisam ser gerados.

Para além da criação da Unidade de Pesquisa sobre o Cerrado no âmbito do MCTI, investimentos em quantidade e regularidade para os grupos, laboratórios e institutos de pesquisa  já  estruturados  serão   decisivos para evitar a destruição do Cerrado. Finalizo lembrando que o Cerrado não é reconhecido como patrimônio nacional do Brasil, o que já foi conseguido pela Amazônia, Mata Atlântica, Serra do Mar, Pantanal e a Zona Costeira.

*Maria Clorinda Soares Fioravanti  é professora da Escola de Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal de Goiás (UFG)

(Artigo publicado originalmente no Portal aredação.com.br , de Goiânia)


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