sábado, 29 de junho de 2024

Rio Grande do Sul: não é resgate, é descaso! - artigo do escritor Marcelo Teixeira


Rio Grande do Sul: não é resgate, é descaso!

Publicado em 16 de junho por abpedagogiaespirita

Por Marcelo Teixeira




Já escrevi algumas vezes sobre os efeitos danosos que a ganância humana tem causado ao meio ambiente. Na primeira vez, no segundo livro de minha autoria – “O espiritismo é pop” – toco no assunto em dois artigos: em ‘Aflições ecológicas de ontem e hoje’, falo sobre as cheias que afetaram o Espírito Santo em 2013 devido às fortes chuvas que caíram e encontraram rios assoreados e ocupação desordenada do solo. Já em “Leis morais e planejamento urbano”, comento sobre a descompostura que o Brasil tomou da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2011 por não ter se precavido para evitar a tragédia que se abateu sobre a Região Serrana do RJ em janeiro daquele ano.  

No terceiro artigo – “Brumadinho – resgate de vidas passadas? Devagar com o andor!” – questiono o hábito que o espírita brasileiro tem de achar que toda tragédia que acontece tem a ver com resgate de débitos de vidas pretéritas. Aliás, já havia feito o mesmo nos dois primeiros artigos, mas aprofundei a questão no terceiro. 

Por fim, no quarto – “Rolam as cifras, jorram as águas” – critico uma canção espírita edulcorada que enaltece um Brasil onírico em que não há “terremotos, vulcões, furacões” ao mesmo tempo em que falo sobre a tromba d´água que, em março de 2020, vitimou cidades da Baixada Santista. 

Resolvi voltar ao assunto devido ao grave problema que o Estado do Rio Grande do Sul (RS) enfrentou em maio de 2024. Uma cheia histórica foi alagando várias cidades do Vale do Taquari, o que resultou no transbordamento tanto do Rio Guaíba, que margeia a capital, Porto Alegre, como a Lagoa dos Patos, o que afetou outras cidades. O estrago foi grande. Cerca de 150 pessoas mortas e outras tantas desaparecidas; rodoviária e aeroporto submersos; residências e estabelecimentos comerciais também debaixo d´água; lama e entulho por todos os lados; gente desabrigada; rodovias interditadas; aulas suspensas; doenças como leptospirose e dengue eclodindo… E prejuízos; incontáveis prejuízos. 

Esse resumo se faz importante porque um expositor espírita declarou que toda essa tragédia ambiental faz parte do processo de transição do planeta para o patamar evolutivo conhecido como mundo de regeneração e que quem padeceu na ocasião tinha de passar por tal experiência a fim de resgatar dívidas morais de vidas pretéritas e coisa e tal.

Não para por aí. Recebi de uma amiga um vídeo de outro conhecido tribuno espírita do qual não sou fã. Como ela achou pertinente o que ele diz, achou por bem me enviar. Nesse vídeo, perguntam ao expositor se o ocorrido em solo gaúcho seria uma espécie de punição/carma ou se deveríamos buscar os culpados. O entrevistado fala sobre a necessidade de o Brasil voltar a ser solidário, chama atenção para o fato de não podermos nos pautar por ódio e preconceito (achei bom), salienta que o povo do RS é forte, que o estado se erguerá com a ajuda de todo o país e ressaltou a missão do Brasil como – segundo é comum no movimento espírita federativo – coração do mundo. Não respondeu, no entanto, à pergunta do entrevistador. Preferiu tergiversar. 

Respondi à minha amiga que a fala desse expositor era mais um exemplo de discurso “isentão”. Sempre falam sobre caridade, solidariedade, missão do Brasil… Faltou tocar no X da questão, que é a (ir)responsabilidade das autoridades locais ante o acontecido. Ela, então, observou que, dentro da casa espírita, segundo recomendações de Allan Kardec, não devemos tratar de temas “irritantes” (as aspas são dela). 

Esse alerta consta da edição de 1862 da “Revista Espírita”. Faz parte de uma mensagem que Allan Kardec enviou aos espíritas da cidade de Lyon. Nela, o organizador da doutrina espírita atenta para a necessidade de os seguidores da doutrina perseverarem na divulgação e vivência do espiritismo, evitarem contendas com terceiros e não tocarem em assuntos que fujam à alçada espírita. O parágrafo que transcrevo a seguir explicita: 

“Não vos deixeis cair também nesse laço. Em vossas reuniões, afastai cuidadosamente tudo quando se refere à política e a questões irritantes. A tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa.” 

É corriqueiro os integrantes do movimento espírita federativo recorrerem ao dito acima para justificarem o fato de não falarem sobre política no meio espírita. Necessitamos, contudo, contextualizar a fala de Kardec. 

Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte, era quem governava a França à época do surgimento da doutrina espírita. Como ele subiu ao poder por ter dado um golpe após o parlamento tê-lo impedido de concorrer a um segundo mandato, a situação ficou tensa. Mesmo porque, o golpe contou com o suporte da burguesia, das forças armadas e do clero. Além disso, Napoleão III, para obter o apoio do povo, fundou organizações trabalhistas, construiu ferrovias e moradias populares, entre outras melhorias. Só que ele também manteve os opositores políticos sob rédea curta e cerceou a imprensa. Daí a recomendação de Kardec para que assuntos tidos como irritantes como a política da época fossem evitados. Ele não podia deixar que o nascente movimento espírita sofresse represálias, sob o risco de ser abafado ou até mesmo extinto. 

Em 1870, um ano depois do falecimento de Kardec, Napoleão III foi derrotado e posteriormente exilado. O país pôde, então, respirar ares mais leves. Não tomemos, portanto, ao pé da letra uma recomendação que dizia respeito à França de então. Hoje em dia, os tempos são outros. Tempos de estado democrático de direito cerrando fileiras contra o radicalismo autoritário da extrema direita. Tempos também de informação livre e tomada de posição, a fim de que um mundo mais justo e ecologicamente sustentável seja construído e mantido por todos nós. 

Falemos, então, sobre o que deve ser falado e sem receio de sermos irritantes. Mesmo porque, no mesmo parágrafo transcrito, Kardec assevera que não devemos ter objeções quanto à moral, caso esta seja boa. Venhamos e convenhamos, a moral que diz respeito à preservação de vidas humanas e de animais, ao respeito à natureza e à necessidade de lutarmos por uma política transparente e honesta e por justiça social é muito boa. 

Eduardo Leite, governador do RS desde 2019, segundo informaram vários veículos de comunicação de âmbito nacional, é acusado pela imprensa gaúcha, ambientalistas e entidades de preservação da natureza de ter mudado quase 500 normas do código ambiental do estado. Segundo reportagem publicada pela revista “Veja”, esse novo código, quando entrou em vigor, em 2020, “estava alinhado ao enfraquecimento da proteção ambiental pregada pelo então presidente Jair Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, assim como a bancada ruralista do Congresso Nacional”.

A fim de favorecer o ambiente de negócios, Eduardo Leite e equipe alegaram que a legislação antiga atrapalhava o progresso da economia gaúcha. Para tanto, foi criada a Licença Ambiental por Compromisso (LAC), que é concedida pelo órgão estadual competente em apenas 48 horas e sem que haja qualquer análise prévia do projeto. A isso, o governador se referiu eufemisticamente como “modernização do Código Ambiental”. O problema é que essa “modernização” ratificada pela LAC tem como ponto central o autolicenciamento. Isso significa que a autorização para desmatar, aterrar e similares é concedida em apenas 48 horas pelo governo estadual sem qualquer análise prévia. O empresário precisa somente preencher um formulário, no qual assegura que está seguindo as exigências ambientais cabíveis. O governo, então, libera sem qualquer tipo de verificação. 

Além disso, foram revogados 13 itens do Código Florestal Gaúcho, justamente os que dizem respeito ao sistema de proteção ao pampa, bioma característico do RS. Foram afetados os pontos que regulamentam o manejo de florestas nativas e os que proibiam o corte de árvores típicas como figueiras, inhanduvás, corticeiras e algarrobos. Conforme noticiado pela “Veja”, o Rio Grande do Sul, até a chegada de Eduardo Leite ao governo, era considerado pioneiro em matéria de preservação ambiental. O referido Código Florestal, é bom frisar, havia sido discutido criteriosamente por nove anos antes de ser aprovado e implantado, fato que se deu em 2000. 

O desmantelamento ambiental infelizmente prosseguiu, pois, em 2021, Leite flexibilizou a elogiada e pioneira lei sobre o uso de agrotóxicos. Tida como referência no país e criada nos anos 1980, ela estipulava que nenhum defensivo agrícola poderia ser utilizado em solo gaúcho se não fosse permitido no país de origem. Caiu por terra. Por fim, em 2024, o governador tornou flexível a lei que trata da construção de barragens e reservatórios de água dentro das áreas de proteção. Tudo isso resultou na formação das enchentes que inundaram o estado. 

Por isso, antes de falarmos em resgates de débitos passados, reflitamos: toda essa série de descasos e irresponsabilidades ocorreu desde 2020 para que, quatro anos depois, cerca de 150 pessoas desencarnassem e outras tantas perdessem família e bens materiais? Pouco provável. O que houve foi simplesmente falta de amor ao próximo e desrespeito à natureza. Tudo em nome do lucro a qualquer preço. Tanto é assim que o Ministério Público (MP), junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), resolveu fazer uma minuciosa análise nas mudanças legislativas e ambientais que Leite promoveu e que muito provavelmente facilitaram o acontecimento da catástrofe, conforme reportagem da revista “Carta-Capital”. Em suma: Eduardo Leite terá de se explicar. 

Em “O livro dos Espíritos”, no capítulo destinado à Lei de Igualdade, os benfeitores espirituais deixam claro na questão 807: os que abusam da superioridade de suas posições sociais para, em próprio proveito, oprimir os fracos (no caso, a população e o meio ambiente) serão, oportunamente, reprimidos. “Renascerão numa existência em que terão de sofrer tudo o que tiverem feito sofrer os outros”. Como e quando se dará, foge à nossa estreita visão. A nós, em situações como a ocorrida em terras gaúchas, cabe auxiliar e amparar os flagelados, exigir da Justiça apuração rigorosa e punição dos culpados, pressionar os políticos para que tomem tenência e governem em prol do bem coletivo e nos mobilizarmos para lidarmos e nos adaptarmos às mudanças climáticas causadas pela nossa irresponsabilidade no trato com terras, águas, árvores, animais e seres humanos. 

Já passou da hora de os espíritas (não todos, ressalto) pararem de afirmar que todo e qualquer desastre ambiental ou provocado ocorre porque as vítimas são infratores de existências passadas reunidos em dado local ou circunstância com o intuito de saldarem tal infração a fim de evoluírem. Não utilizemos os pressupostos espíritas como desculpa para justificar o descaso com o meio ambiente e a vida do próximo. A razão para tais eventos está mais próxima, é mais profunda do que parece e requer nossa participação para que as perdas sejam as menores possíveis. 

Até o próximo assunto irritante!

Marcelo Teixeira

Fonte - Associação Brasileira de Pedagogia Espírita


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