sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A solidão - artigo de Dom João Santos Cardoso


A solidão

Dom João Santos Cardoso

Arcebispo de Natal (RN)


Geralmente, enfatizamos o aspecto negativo da solidão, como canta Alceu Valença: “a solidão é fera, a solidão devora”, personificando-a como uma força avassaladora e feroz que permeia e está presente em tudo, no cosmos, no silêncio e na escuridão da noite, e até nas ruas, onde a vida aparentemente vibrante pode ser substituída pela sensação de vazio. Na solidão, o tempo se alonga e se arrasta, causando um “descompasso no coração”, refletindo a dor emocional e o vazio que acompanham quem a experimenta. 

A solidão pode se manifestar em qualquer lugar. Ela se revela no anonimato das grandes cidades e no distanciamento emocional dos conglomerados urbanos, onde, apesar da proximidade física entre as pessoas, elas amargam o isolamento e a indiferença. Nem mesmo as interações superficiais das redes sociais e as conexões digitais conseguem preencher o vazio existencial. 

Apesar dessa visão sombria, a solidão possui um lado positivo, que pode ser cultivado na introspecção e para o autoconhecimento. Os místicos veem na solidão um caminho para a reconexão com o divino e com o próprio eu. No âmbito filosófico, Nietzsche, em particular, reconhece os desafios da solidão, mas a exalta como uma virtude moral e um antídoto contra o conformismo. Para ele, a solidão torna-se fecunda, funcionando como uma ferramenta de transformação pessoal, autossuficiência e criação. Portanto, a solidão não é um estado de isolamento a ser temido, mas uma condição essencial para a liberdade interior e o florescimento espiritual. 

Segundo Nietzsche, a solidão é fundamental para a autenticidade e a criação de novos valores. Ele critica o modo como a vida em sociedade distrai os indivíduos com suas exigências diárias, impedindo o silêncio necessário para o amadurecimento. Em Aurora (aforisma 177), ele critica os que habitam as grandes cidades e se perdem nos ruídos e nas distrações da vida pública, impedindo a verdadeira produtividade. Somente na solidão, longe das influências externas, os indivíduos podem cultivar suas próprias ideias e alcançar uma profundidade autêntica. 

A solidão, segundo Nietzsche, é uma forma de resistência à massificação. “O homem receoso não sabe o que é estar só; há sempre um inimigo atrás de sua cadeira” (Aurora, aforisma 249). A metáfora do “inimigo” sugere que aqueles que projetam seus medos internos no ambiente ao redor impossibilitam uma verdadeira experiência de solitude. Esse medo impede o indivíduo de enfrentar a si mesmo e de experimentar uma introspecção genuína. A solidão, em vez de ser uma experiência negativa, é uma oportunidade para o crescimento pessoal e a liberdade interior. 

Para os que temem a solidão, ela parece insuportável, pois a ausência de distrações os força a confrontar seus medos. No entanto, é justamente na solidão que o indivíduo se distancia das pressões sociais e pode reconquistar seu eu e produzir novos valores. Segundo Nietzsche, embora traga tédio e desalento, a solidão oferece a oportunidade de acessar a profundidade interior, proporcionando momentos de recolhimento comparáveis a uma “poção tonificante” retirada do próprio íntimo. “Quem se entrincheira totalmente contra o tédio, entrincheira-se também contra si mesmo: nunca lhe será dado beber a mais tonificante poção do seu próprio manancial íntimo” (Humano, Demasiado Humano, aforisma 200). 

A solidão também é uma resposta à alienação que a vida em sociedade pode causar. O homem, quando imerso na multidão, acaba vivendo como os outros, perdendo sua autenticidade. Ao se isolar no “deserto”, ele recupera sua bondade e reencontra sua verdadeira essência, longe das influências superficiais que permeiam a sociedade. “E é por isso que vou para a solidão — para não beber das cisternas que estão dispostas para todos. […]. Tenho então necessidade do deserto para voltar a ser bom” (Aurora, aforisma 491). 

Enfim, a solidão é um meio necessário para a reconexão com o próprio eu, com Deus, e é uma fonte de força criativa. Apenas ao se afastar do barulho da vida cotidiana, o indivíduo pode criar algo novo e significativo, transcendendo as limitações impostas pela massificação social.


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