sábado, 25 de janeiro de 2025

REALISTAS E MENTIROSOS - artigo do Acadêmico José Renato Nalini


REALISTAS E MENTIROSOS

Acadêmico: José Renato Nalini*

É impossível não prestar atenção àquilo que tem ocorrido em todo o planeta


Realistas e mentirosos

Quando se acusa de pessimistas aqueles que alertam a parte lúcida – e sensivelmente menor – da sociedade sobre os perigos que a humanidade corre, costumo dizer que já não cabe dividir o pensamento entre otimistas e pessimistas. A categoria hoje é outra: somos realistas ou mentirosos.


Sim. É impossível não prestar atenção àquilo que tem ocorrido em todo o planeta. Seca inclemente, estiagem, escassez hídrica ou chuvas torrenciais, inundações, alagamentos, enchentes. Ambos os fenômenos causam mortes. Principalmente as de pessoas excluídas, carentes e até invisíveis. Os humildes são as vítimas preferenciais das emergências climáticas. Não puderam se precaver como os ricos. Suas moradias são toscas e erguidas sobre áreas insuscetíveis de ocupação residencial.

As coisas vão piorar, se o mundo persistir em não ter juízo. Enquanto não houver eliminação dos combustíveis fósseis, que emitem gases venenosos causadores do efeito estufa. Causa daquilo que já foi chamado de “mudança climática”, mas hoje está num outro patamar: são “emergências climáticas”, a cada momento mais frequentes e mais intensas.

Os riscos são cada vez maiores. Já tivemos uma pandemia de covid-19 cujas causas até hoje são discutidas. Sobre sua origem, não existe diagnóstico definitivo. Os estudos prosseguem, mas não chegaram à conclusão confiável. Outras enfermidades poderão surgir e surgirão, com o derretimento das calotas polares. Não se sabe o que acontecerá quando a camada de gelo que parecia eterna se tornar líquido.

Antes disso, o calor continuará a matar. Não aparece como “causa mortis” nos assentos de óbito. Mas é o gatilho deflagrador das comorbidades letais.

A desertificação da Terra multiplicará o fenômeno dos refugiados climáticos. As guerras do século 21, do qual ainda restam três quartos por vir, serão conflitos motivados por falta d’água. Os imbecis ainda não perceberam que se pode viver sem petróleo, mas não se vive sem água.

O mundo já não é o mesmo e pouca gente evidencia ter consciência disso. Existe uma espécie de terrorismo global, sem fronteiras, com estratégias novas. As redes sociais invasivas e disruptivas mutilam e transformam as mentes. Fanáticos ainda são negacionistas e se recusam a conviver com a realidade. As advertências científicas são desprezadas. O alvo da robusta campanha de desinformação é a capacidade tosca de pressentir o que acontecerá, se não houver drástica redução na emissão dos gases venenosos. A estratégia é manter os iletrados atentos ao mundo web, entretidos com TikToks, memes, influenciados por cérebros vazios, mas hábeis em conquistar milhões de seguidores.

Manter o gado iludido com a virtualidade é o cruzamento da alta eficácia com custo reduzido. Por isso é que não existem mais pessimistas e otimistas. Só vicejam os realistas – em número reduzidíssimo – e os mentirosos. Ou será que acreditam no que falam os defensores do desmatamento do que ainda resta de cobertura vegetal em nossos biomas, sob o argumento invencível de se “alimentar o planeta”?

Quem continua a desmatar, a produzir combustíveis fósseis e plásticos, a poluir os mares, a acabar com a biodiversidade está, na verdade, a praticar uma nova espécie de crime contra a humanidade. De idêntica forma, os especuladores imobiliários que não respeitam a natureza e que resistem a adotar soluções a favor dela.

Ocupar todos os espaços do solo e fazer construções que não deixam um centímetro quadrado para o verde, impedem a drenagem, é persistir no mesmo fatídico erro de retificar rios, sepultar córregos e impermeabilizar o solo para que as precipitações pluviométricas nele encontrem o ideal para se converterem nas enxurradas assassinas. Não temos aprendido com o erro. Ao contrário, nos aperfeiçoamos em errar mais.

Negar as emergências climáticas não é sintoma de ignorância, apenas. E como os negacionistas não raro têm formação completa na pós-graduação, a postura só encontra explicação na mentira. A mentira deslavada e hipócrita, de quem coloca o dinheiro acima da vida.

A derradeira esperança é confiar na infância e na adolescência ainda não contaminadas. As mentes infantis são puras e acreditam no que veem. E tendem a acreditar também no que não enxergam, mas lhes é narrado por gente confiável. Mostrar a essa legião que terá de suportar consequências gravíssimas e inescapáveis da omissão pecaminosa de nossa geração pode produzir o efeito salutar de uma feroz indignação.

Conclamar os mais sensíveis a se indignar e a exigir compostura em todos os níveis de mando e direção da sociedade, talvez seja factível. Mas é necessário gritar, berrar para se fazer ouvir. Resta confiar na possibilidade de reversão do quadro tétrico em que nossa irresponsabilidade mergulhou a humanidade, que parece desistir da continuidade de sua aventura sobre este frágil planeta.

Ter coragem para reconhecer que não é pessimismo contar a verdade e que o otimismo hoje, para decepção dos aflitos, equivale a mentir.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Opinião, em 24 01 2025

*José Renato Nalini é acadêmico da Academia Paulista de Letras


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