quinta-feira, 30 de outubro de 2025

O RISCADO E A VITROLA - artigo de Gabriel Chalita, acadêmico da Academia Paulista de Letras


O RISCADO E A VITROLA

Acadêmico: Gabriel Chalita*

Um dia desses, na casa de um amigo, segurei um disco de vinil nas mãos, antes de entregar à agulha da vitrola. Era como se eu segurasse o meu passado. O meu passado de músicas e de cuidados.


O riscado e a vitrola

Alguns não sabem o que é. É assim que é. O tempo vai desdizendo o que o tempo dizia. As invencionices vão para as prateleiras do ontem, enquanto o hoje apresenta as novidades. A sede de novidade parece insaciável.

Havia uma vitrola no tempo em que, na casa dos meus pais, esperávamos os discos serem lançados. E saíamos para comprar. Alguns dos grandes cantores deixavam para os festejos de fim de ano os lançamentos. E iam aos programas de televisão. E faziam das capas um caprichoso dizer.

Era bom de abrir o envelope, de retirar o plástico, de segurar nas mãos o disco e de entregar à vitrola. Os discos traziam as músicas, cada uma em uma faixa. Escolhíamos a música e colocávamos a agulha e nos sentávamos para ouvir. Ou, então, deixávamos desde a primeira.

Eu gostava de ouvir várias vezes. E de ir conversando com as canções. As letras. Os acordes. Acordava com o tocar do sino da Igreja, que ficava perto de casa e que chamava as pessoas à reza, e já colocava o disco na vitrola, enquanto me preparava para a escola.

Um dia, um riscado no disco. O riscado fazia pular um pedaço da música. E eu não gostava. O riscado era um incômodo. Eu não queria pular uma música. Eu queria ouvir uma a uma. Principalmente, quando quem cantava dizia a mim alguma emoção mais forte.

Eu, criança, reclamei com minha mãe. Ela disse que não tinha jeito. Que ouvisse eu um outro disco. Eu não era das insistências em assuntos que não cabiam aos outros. Minha tia, que ouviu a conversa, disse que ajeitaríamos. Eu sorri.

"Quando você voltar da escola, o disco estará perfeito".

Fui e fui pensando. Não tanto no disco de vinil arranhado, mas no cuidado. Minha tia tinha a profissão de vida de cuidar. E assim fez. E arranhão não mais estava, quando eu cheguei. Fui beijar em gratidão. Ela disse que eu merecia a remoção dos arranhões.

Minha mãe riu e falou de uma sujeira incrustada, palavra que, na época, talvez eu nem tivesse entendido. O fato é que a música tocava como eu queria que tocasse.

O tempo do existir foi me ensinando a remover alguns riscados. A vida não é plana, apenas. Como não o é a natureza. Somos natureza. E na natureza há os ciclos. Há o chegar e o partir. Há o frio e o calor. Há o sol e há os dias sem sol.

Na natureza, as águas ora estão mais amigáveis, ora fazem um riscado que nos parece uma resposta ao tanto que destruímos. A natureza nos dá respostas. E, também, os humanos. É preciso estar atento.

A atenção da minha tia, naquele amanhecer da minha infância, ensinou mais do que limpar um disco. Um riscado pode ser consertado. Algumas vezes conseguimos sozinhos, outras dependemos de quem sabe o que fazer. É bom não sabermos tudo. É bom precisarmos do outro.

O disco que tocava foi feito por muitos. A voz de quem cantava era parte de uma parte maior. Dos que tocavam. Dos que compuseram. Dos que trabalharam para fazer com que ouvíssemos as músicas que tocavam.

Penso nessas histórias todas e renovo em mim a decisão de não arranhar a melodia dos outros e de, ao contrário, estar atento para algumas limpezas.

Minha tia já foi ouvir canções do lado de lá, onde o mistério nos segreda a vida. Minha tia está do lado de cá, em mim. Como em mim está aquela vitrola tocando as músicas que me despertavam os dias da minha infância. Era bonito, também, quando a música era de cantar junto.

Nos natais cantantes da minha casa, eu ia afinando o meu jeito de compreender as palavras que deveriam ser ditas para trazer harmonia ao mundo.

As vitrolas voltaram em alguns lugares. Um dia desses, na casa de um amigo, segurei um disco de vinil nas mãos, antes de entregar à agulha da vitrola. Era como se eu segurasse o meu passado. O meu passado de músicas e de cuidados.

*Gabriel Chalita é acadêmico da Academia Paulista de Letras

Publicado em O Dia, em 26 10 2025


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