Aqui pra nós, sobreviventes ainda neste século XXI, tudo
parecido ou ligado ao "Sermão aos Peixes" a gente vai buscar..., nos
dias de hoje - aqui na Ilha.
Sobre o livro, Ronaldo Vainfas afirma: "Não por acaso,
apareceu no século 17 um livro intitulado "A Arte de Furtar", que
alguns atribuem ao padre Antônio Vieira".
E eu fui buscar esse artigo com o título "A arte de
furtar", publicado originalmente na Folha de São Paulo do dia 03 de junho
de 2007... Era um domingo, quando o artigo do professor Ronaldo Vainfas saiu
nas páginas da Folha.A arte de furtar
Falar em corrupção no Antigo Regime é anacrônico, pois
relação promíscua entre público e privado estava prevista no sistema
RONALDO VAINFAS
Escrevendo nos anos 1920 o seu "Retrato do
Brasil", Paulo Prado viu na cobiça um dos maiores pecados de nossa
formação histórica.
Obsessão diabólica pela riqueza fácil, o açúcar, tabaco,
ouro e os diamantes. Cerca de dez anos depois, Sérgio Buarque de Holanda diria
quase o mesmo, em seu "Raízes do Brasil", sublinhando o caráter
predatório da colonização portuguesa.
Caio Prado Jr. endossaria esse juízo em "Formação do
Brasil Contemporâneo", de 1942, frisando o sentido expoliativo do sistema
colonial. Cobiça, dilapidação, exploração, tudo temperado pela corrupção
sistêmica.
Mas o fato é que a corrupção, em nossos três primeiros
séculos, não chegava a ser uma irregularidade. Pelo contrário, era
institucionalizada e derivava do que Raimundo Faoro chamou de Estado
patrimonial, no qual o público e o privado se imbricavam completamente.
Exemplo clássico dessa confusão se percebe logo no regime de
capitanias hereditárias, implantado por d. João 3ø para colonizar o Brasil.
Nele os donatários eram, ao mesmo tempo, representantes do rei e de seus
interesses particulares.
Como funcionários do Estado, possuíam atribuições militares,
governativas, judiciárias e fiscais, sendo remunerados com o direito a terras,
parte dos impostos e outros benefícios transmissíveis por herança.
O rei compartilhava, portanto, a riqueza de seu erário com
os beneficiários de cargos governativos, sendo difícil distinguir, na lógica do
sistema, o público do privado. A implantação do governo-geral, em 1548,
procurou delimitar um pouco mais as duas esferas sem, contudo, alterar a lógica
patrimonialista do sistema.
Dizer, portanto, que as autoridades coloniais eram corruptas
não deixa de ser um anacronismo, pois o sistema admitia perfeitamente que os
governantes se apropriassem do "bem comum" ou da riqueza do rei,
desde que a "parte do leão" ficasse com o rei.
Mas, a bem da verdade, essa não foi uma marca exclusiva de
Portugal e de suas colônias, senão um traço do Antigo Regime.
Na França de Luiz 14, o próprio rei certa vez perguntou a um
de seus governadores se tinha se aproveitado bem de seu cargo, ouvindo do mesmo
que, sim, aproveitara muito, cuidando, porém, de resguardar os interesses
superiores de Sua Majestade.
Na Espanha do século 17, por exemplo, chegou-se a instituir
um imposto sobre mercadorias não declaradas no porto de Sevilha, vindas da
América. Um imposto perfeitamente legal sobre o contrabando! No mundo barroco
isso era possível.
Tremenda confusão
Mas, voltando ao caso luso-brasileiro, era comum a coroa
arrendar o direito de cobrar impostos a particulares, assim como o direito de
explorar produtos monopolizados pelo Estado, numa tremenda confusão entre as
esferas pública e privada.
O resultado foi a tessitura de uma complexa teia, em que
comerciantes, burocratas, traficantes e senhores escravistas compartilhavam
privilégios e alcançavam posições graças a contatos pessoais e familiares.
Freqüentemente, estavam unidos por laços parentais, como nos
mostrou Stuart Schwartz no seu estudo sobre o Tribunal da Relação da Bahia.
Os juízes da Relação estavam quase todos unidos aos senhores
locais por laços familiares.
A imbricação do bem comum com o interesse particular era
inerente ao sistema e uma de suas principais engrenagens.
Mas isso não significa que não houvesse, desde o começo, a
corrupção miúda, a propina ocasional para adiantar um processo na Justiça ou
livrar-se dele.
Nos documentos coloniais encontramos, entre milhares de
exemplos, um senhor de escravos baiano que pagou a um oficial de justiça para
destruir certo processo que contra ele havia. Estava acusado de obrigar seus
escravos a atos de sodomia.
Não por acaso, apareceu no século 17 um livro intitulado
"A Arte de Furtar", que alguns atribuem ao padre Antônio Vieira.
Crítico e irônico, o autor abre o livro dizendo que a arte
de furtar era mesmo nobre, após o que passa a tipificar, bem ao estilo barroco,
dezenas de fórmulas dessa arte.
Dos que furtam com unhas reais, agudas, sábias, militares,
tímidas, disfarçadas, postiças, maliciosas, amorosas, descuidadas. Dos que
furtam com mão de gato. Dos que furtam com unhas de fome. Isso sem falar em
certos princípios básicos dessa ciência do furto.
Exemplos: como, tomando pouco, se rouba mais; como se furta
a título de benefício; dos que são ladrões, sem deixar que outros o sejam; como
os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões; como
se podem furtar a El Rei 20 mil cruzados e demandá-lo por outros tantos; como
pode o próprio rei ter unhas para furtar.
Entre reis ladrões e governantes venais, assim se construiu
o Antigo Regime.
Tudo favorecido, na teoria, pela concentração de poderes na
mão do soberano, e seu loteamento, na prática, por uma rede de apaniguados
bem-nascidos ou que assim se tornaram, comprando, é claro, cargos ou títulos.
Os ilustrados do século 18 puseram em xeque esse estado de
coisas, em nome da razão, retomando críticas mais ou menos isoladas do século
anterior. Montesquieu, por exemplo, advogou a separação dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, desafiando o absolutismo monárquico, preocupado em
como preservar os governos da corrupção.
A Revolução Francesa derrubou o rei e o decapitou.
O liberalismo ganhou o mundo ocidental, o patrimonialismo
foi tolhido, a separação entre o público e o privado se tornou um valor
fundamental das sociedades burguesas.
Em Portugal, porém, tudo foi mais lento. Basta ver a batalha
com que se deparou o marquês de Pombal, no século 18, para fazer suas reformas
modernizantes, enfrentando os privilégios dos "grandes". E, no
Brasil, o último país das Américas a abolir a escravidão, tudo foi lentíssimo.
A separação entre o público e o privado é ainda hoje tão
acanhada que se pode dizer que "A Arte de Furtar" é livro de
extraordinária atualidade.
Corrupção, venalidade, cobiça, eis algumas das raízes do
Brasil. Daquelas troncudas.
RONALDO VAINFAS é professor titular de história na
Universidade Federal Fluminense, autor de "Trópico dos Pecados"
(editora Nova Fronteira).
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