Marli Gonçalves
Pelos bigodes de Salvador Dali! Eu vejo, mas tem coisas
que não queria estar vendo. Vejo ao vivo e em cores. Eu vejo o que todo mundo
pode ver, mas talvez eu seja ou esteja mais atenta com essa minha mania de
reportar, de reparar. Coisas de jornalista. Como diria nosso Cazuza, o próprio,
que deve bem ter visto onde tudo isso ia dar e se mandou: eu vejo o futuro
repetir o passado.
Eu vejo gente, antes de tudo. Gente falindo, quebrando,
sem esperanças, gente agoniada com o rumo dessa toada. Sendo derrubadas como as
vacas pelo rabo nas vaquejadas. Levando rasteiras. Vejo a minha gente dividida
e sem noção.
Com que frequência? O tempo inteiro, como respondeu o
menino do filme de cinema que, apavorado, via gente morta.
Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome. Nem de frio,
jogado numa rua movimentada de São Paulo – o dia inteiro morto, ali, até que
alguém percebesse que aquele corpo já não se mexia, ali morto jazia. São tantos corpos jogados pela cidade que
poucos param para ver se ainda se mexem, se tremem, se têm fome, ou se apenas
estão decididos a se consumir a si próprios acelerando verem-se livres da
existência.
Eu não posso, embora tente, ver beleza em tudo. As coisas
estão feias, ultrapassadas, caindo aos pedaços porque ninguém consegue ver, nem
sentir, renovação.
Eu vejo isso por cima de um muro, muro cheio de políticos
sem ideal, amontoados, se reunindo para decidir quando se reunirão para decidir
que ali vão ficar. Em cima do muro. Mas de lá eles não avistam o que eu vejo,
nem conseguem ouvir os apelos dos que eu vejo por aí tentando sobreviver.
Mantendo um mínimo de dignidade, cada dia mais rala.
Eu vejo tudo enquadrado para onde dirijo o olhar – de uma
vista cansada que a cada ano aumenta um grau. Talvez até para não serem vistas, as próprias coisas se embacem, se distanciem.
Essa semana atualizei as lentes dos meus óculos para ver de perto. E os de para
ver de longe. Dois, que um só para tudo – bifocal -não acompanha o movimento
rápido que faço pra não perder de ver nada, me confunde e tonteia. Não posso me
dar ao luxo de não enxergar para qualquer lado que olhe. Nem que seja só para
contar a vocês algumas das minhas observações.
Tem de ser um para ver bem de perto; outro para avistar
de longe. E não são mais as letrinhas do cartaz do consultório do
oftalmologista o que tenho de decifrar. O que não quero é ver pontos negros,
nem pontinhos brilhantes, nem a luz cegando meus olhos quando vem em direção
contrária. Luz é para iluminar, não ofuscar a gente.
Não vire o rosto. Olhe também o que está havendo e não dá
para negar. Negue que me pertenceu, Que eu mostro a boca molhada. E ainda
marcada pelo beijo seu.
Eu vejo flores em você. E foi o aroma delas que me fez
lembrar de um outro e do que eu vi esses dias caminhando um pouco na grande
cidade onde vivo; e o que ouvi; o gosto amargo que veio na minha boca; o
terrível cheiro de esgoto que senti vindo da água podre de esgotos escorrendo
pelas calçadas de um dos seus bairros mais nobres, e o que me fez imaginar como
andará o resto do território nacional.
Ver é sentido. Houve uma vez uma canção que falava perto
do coração. O que os olhos não veem o coração não sente, uma forma de tentar
explicar nossa própria distração, nossa própria cegueira.
Marli Gonçalves, jornalista – Vejo você amanhã, ou
depois. Tudo bem. Vejo a porta abrir. Cheia de esperança.
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