Marli Gonçalves
Medo, quatro letras que choram, que têm nos trazido
sofrimento, insegurança, desconforto e insegurança. Medo que faz a gente
vacilar, temer – eu disse, presta atenção, temer, de eu temo, tu temes, ele
teme, nós tememos...
As balas zunem nos céus do país, nos céus das grandes
cidades, cortando vidas, aleijando, marcando gerações a ferro e fogo, pegando
até quem ainda nem nasceu. Derramando sangue nas calçadas e sarjetas. Acertam o
que não veem. Vêm de todos os lados e não há como se proteger nessa guerra
ainda não declarada apenas, creio, porque não se sabe como nomeá-la, e quais
leis e restrições seriam impostas se finalmente declarada oficial. Qual lado
seria o bom, o mau.
Medo do bandido. Ele não tem o que perder, e só quer
tirar o que é seu, toca o terror porque sabe que a sua própria vida é muito
curta, tenta ganhar mais minutos tirando a dos outros em um pacto diabólico.
Você também podia estar passando ali por um deles.
Medo da polícia que se confunde, ora de um lado; ora de
outro. Que reage a bala, mal treinada para outras táticas, e polícia que se
defende atirando no peito de um pobre coitado em surto, catador de latas e
papelão, “burro sem rabo”, que pacatamente todos os dias arrastava sua carroça
e sua loucura pelas ruas e ladeiras. Polícia que à luz do dia intimida as
testemunhas do seu próprio despreparo. Tudo fica por isso mesmo. Você podia
estar passando ali, podia ter assistido a essa cena, ter sido atingido.
Medo de qualquer barulho. Das sirenes. Das buzinas. Dos
gritos de horror e fúria dos torcedores fanáticos afiando suas facas em
barrigas adversárias. Você podia estar passando por ali naquela mesma hora do
estouro dessa energia ruim. O jogo podia acabar assim, sem vencedores, sem
bola, sem gols, sem times.Medo de ser atingido por um carro desgovernado,
dirigido por um bêbado que se divertia irresponsavelmente. Você podia estar
passando ali, podia ser você. Sem socorro.
Não é medo bobo. É medo. Na sua mais pura acepção, de
sentimento de insegurança em relação a uma pessoa, situação, objeto, ou perante
qualquer situação de eventual perigo, quando passamos então a enxergá-lo nas
coisas mais bobas. O problema é que ele – esse medo - já não pode ser localizado.
Pior, nem evitado. É geral. Você pode, podia, estar diante de todos esses
perigos mostrados no noticiário e que dizimaram vidas, e que falam de
personagens que não mais poderão contar suas histórias. Nós teremos de contar
por elas.
É medo generalizado que ataca até os corajosos. Nos tira
a paz. Nos faz não querer sair de casa, pensar duas vezes antes de andar por
aí. Angústia. Medo que nos prende e condena a uma prisão muito particular, a de
nossos pensamentos – esses, sim, não sabemos por que estamos sendo condenados a
temer.
Na moral. Apavorados, vemos a situação estar saindo
completamente do controle, e em todo o mundo que se dizia civilizado. Como
naqueles violentos jogos de ficção a que assistimos em filmes e seriados, estes
estão sendo rodados tendo a nós como protagonistas em tramas que dificilmente
alguns roteiristas ousariam imaginar ver acontecer na vida real, mas onde se
repetem de forma ainda mais cruel.
Um fato um dia, o horror; no outro mais um o sobrepuja e
faz com que esqueçamos continuamente, sobrando apenas a possibilidade de, ao
fim, de tempos em tempos, mostrá-los como estatísticas impessoais, números,
percentuais, comparações com o mesmo período do ano passado. Para que servirão?
– você pensa.
O medo também pode ser provocado por razões sem
fundamento ou lógica racional. Mas não é deste que tratamos. Fantasmas, sacis,
mulas sem cabeça viram nada diante dos demônios que tomam os humanos,
deixando-os bestas irracionais e desmedidas, irreconhecíveis até por eles
mesmos entre si.
O nosso medo tem muita justificativa nesse momento
urbano.
Marli Gonçalves, jornalista – O mar definitivamente não
está para peixe.
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