A cada Chester vendido, a Perdigão promete doar outro
para “uma família que precisa”. Apesar da causa nobre, o comercial de
divulgação da campanha cai no lugar comum de representar pessoas negras como a
“família que precisa” na ceia de Natal e, por outro lado, atribuir a virtude da
caridade a uma família branca. Para Silvio Almeida, advogado, professor de
Direito e presidente do Instituto Luiz Gama, que promove direitos da população
negra e minorias, a peça publicitária reflete as estruturas racistas da
sociedade brasileira, em que os negros são automaticamente associados à
condição da pobreza. Autor do livro O que é racismo estrutural (Editora
Letramento), o doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP adverte
que as empresas precisam adotar políticas antirracistas permanentes para não
seguir reproduzindo preconceitos em seus discursos e produtos.
Pergunta. Qual mensagem o comercial da Perdigão emite ao
apresentar uma família negra como necessitada e outra, branca, como abastada e
caridosa?
Resposta. A desigualdade racial constitui o imaginário.
Naturalmente, a propaganda se utiliza desse imaginário para que as pessoas
consumam. Comerciais como o da Perdigão evidenciam o racismo estrutural da
nossa sociedade. Ele apela para um sentimento de caridade que se manifesta toda
vez que nos deparamos com pobres. Em 30 segundos, precisa passar uma mensagem
sucinta sobre compaixão que venda seu produto. Sendo assim, a imagem mais
rápida é a dos negros como pessoas que merecem compaixão. Trata-se de uma visão
tão arraigada, do negro em condição inferior, que a empresa ignora até mesmo os
possíveis efeitos negativos que essa representação pode gerar sobre sua marca,
incluindo a reação de pessoas brancas que rejeitam esses estereótipos.
P. Como operam as engrenagens do racismo estrutural?
R. O racismo estrutural se materializa pelo próprio modo
de ser da sociedade. A lógica do Estado se molda a partir do individualismo,
onde tudo se compra pelo dinheiro. Nesse contexto, o racismo não é algo
anormal. Ele está inserido na estrutura social. Todas as áreas, da economia à
política, estão atravessadas pelo racismo. E as instituições, públicas e
privadas, são os pilares de toda a estrutura. Logo, o racismo não é originário
das instituições. Elas apenas o reproduzem. Por isso também falamos de racismo
institucional, que engloba o meio corporativo. O fato de a sociedade ser
racista não significa que uma empresa tem de aderir à sua lógica racista. Pelo
contrário, ela pode se contrapor ao racismo. Com isso, não só agregaria valor
ao seu produto, mas também se estabeleceria com uma alternativa à sociedade.
P. De que forma as empresas podem evitar a reprodução de
padrões racistas?
R. Partimos do princípio de que nossa sociedade é
desigual e racista. Quando esses meios de comportamento já estão constituídos,
uma empresa só não é racista se for antirracista. Isso vale também para os
indivíduos e qualquer outra instituição. Como o racismo ainda é muito presente
em diversas esferas, é preciso adotar políticas antidiscriminatórias
permanentes e instituir mecanismos que estabeleçam questionamentos às práticas
sociais vigentes nas empresas. Elas não são obrigadas a reproduzir o mundo como
ele é. Elas podem melhorá-lo, ofertando coisas que concorrentes não ofertam.
Isso só acontece se forem capazes de mudar a forma como estabelecem o
relacionamento com o público e suas campanhas de publicidade.
P. Essa postura de enfrentamento ao racismo também
implicaria em mudanças na própria estrutura das empresas?
R. É fundamental subverter os espaços de comando,
desnaturalizar as posições que determinados grupos raciais ocupam. Precisamos
questionar: onde estão os negros na presidência de empresas, nas altas esferas
do Judiciário, na gestão dos clubes de futebol? O pensamento crítico é o
caminho, mas o Estado não oferece condições adequadas para se discutir essas
questões.
P. Nesta semana, o goleiro Jefferson, do Botafogo,
afirmou ao jornal O Globo que, por ser negro, teve de “matar dois leões por
dia” para triunfar no futebol. O que essa expressão revela sobre a percepção
dos negros sobre o racismo?
R. Uma fala como a do Jefferson só parece surpreendente
para quem se propõe a negar o racismo. Qualquer pessoa negra que não está no
espaço previsto para ela tem de matar dois leões por dia. Não podemos tratar
exceções como meros exemplos de superação. Não é admitido que o negro ocupe o
lugar de representação da família rica. Quando ele protesta contra essa
condição de subalternidade que lhe é imposta, falam em “vitimismo” ou “coitadismo”,
que nada mais é que um discurso racista, em que o negro, mesmo oprimido e
explorado, tem de se manter resignado.
P. Por que muitas pessoas, geralmente brancas, falam em
“consciência humana” – se apegando a um argumento do ator Morgan Freeman – para
desqualificar o Dia da Consciência Negra?
R. Gente que se dedica a estudar a fundo as questões
raciais acaba sendo deslegitimada por pessoas que validam seus preconceitos
amparadas na figura de um homem negro importante. Considero equivocada a declaração
do Morgan Freeman, mas, se observarmos o vídeo com calma, percebemos que a fala
está fora de contexto. Ele não quer dizer que o racismo não existe. É uma
maneira atabalhoada de pontuar que, em linhas gerais, só se debate sobre
consciência racial no mês da Consciência Negra. O Morgan Freeman é um exemplo
do negro que só serve aos brancos quando diz algo aceitável para quem não
reconhece o racismo como uma prática social.
Perdigão se manifesta sobre campanha
Em nota enviada à reportagem, a assessoria de comunicação
da BRF, companhia que controla a Perdigão, lamenta a repercussão negativa do
comercial:
“A Perdigão lamenta que a campanha publicitária de Natal
tenha ofendido qualquer um de nossos consumidores. Nunca foi essa a nossa
intenção. Falar de generosidade é, para nós, uma forma de união e agradecimento
a todos os nossos consumidores, que há três anos colaboram para o Natal de mais
de 6 milhões de pessoas, independente de cor, gênero, raça ou religião. É nisso
que acreditamos.”
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