terça-feira, 20 de novembro de 2018

Todos perderão


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SILVIA CAETANO


LISBOA – Os dois lados são responsáveis e ambos sofrerão prejuízos qualquer que seja o desfecho do Brexit, marcado para começar às 23 horas do dia 29 de março do próximo ano. 871 dias após o referendo que o aprovou, em2016, e 585 páginas escritas sobre o acordo técnico possível entre o Reino Unido e a União Européia para formalizá-lo, o caso transformou-se numa enxaqueca para a mais sólida democracia do mundo, liderada por uma atônita Primeira Ministra, Theresa May.

Para compreender o contexto deste imbroglio é preciso retroceder no tempo e perceber como se chegou ao impasse. Os problemas entre os dois contendores são antigos. O referendo a favor do desligamento da UE não foi o detonador da crise. Assim como o assassinato do Arquiduque Fernando Ferdinand, em Sarajevo, em 1914, não foi a causa da Primeira Guerra Mundial. Em ambos os casos, expressaram rivalidades geopolíticas que se arrastavam ao longo de anos, como, por exemplo, a polêmica em torno da fronteira na Irlanda.

O projeto europeu foi o mais importante acordo mundial para a união, paz e prosperidade na Europa. Inicialmente, contou com a formação de seis países, Bélgica, França, Holanda, Alemanha, Luxemburgo e Itália. A iniciativa foi tão bem sucedida que recebeu a adesão 22 outros países, mas com o passar dos anos desviou-se dos seus princípios originais, frustrando suas populações. Uma das expressões deste descontetamento foi a eleição de políticos das extrema-direita em diversos países europeus, sendo a Itália o derradeiro exemplo.

As divergências entre os sócios começaram muito antes do Brexit. Uma delas causada pela mudança nas regras para a eleição do Presidente da Comissão Européia. Até então, escolhido pelos líderes eleitos da Europa e aprovado no Parlamento Europeu, passou a ser indicado pelo grupo político que conquistou mais cadeiras nas eleições parlamentares européias. A alteração do processo não foi bem aceita. A temperatura esquentou na União Européia, que passou a ser acusada de defender prioritariamente seus interesses institucionais e não os dos seus cidadãos, o que é verdade

De contenda em contenda, a insatisfação foi crescendo sem que os dirigentes europeus buscassem equacioná-los através de ampla reforma do modelo de união. O ambiente tornou-se cada vez mais tenso em diversos países. Contudo, impávida e soberba, Bruxelas fez olhar de paissagem acreditando estar no controle da situação. Foi nesse contexto que o Brexit começou a despontar como solução defendida por políticos britânicos para “reconquistar” a soberania do Reino Unido.

Capciosamente, não explicaram ao eleitorado quais seriam os prejuízos decorrentes do desligamento da União Européia. Crítico da UE, o ex- Primeiro Ministro David Cameron é um dos culpados. Ele não parava de atacá-la em todos os fóruns da instituição e até nos mundiais, como em Davos,em 2014.” Quero menos Europa,” disse em diversas ocasiões. Apresentava-se como defensor do Reino Unido mas sem jamais apontar as vantagens da sua adesão ao projeto, onde nunca esteve com os dois pés. Manteve, por exemplo, sua moeda.

Quando Cameron abriu o olho já era tarde. Por motivos eleitoreiros, convocou o referendo convencido que seria vitorioso, mas perdeu a parada. O resultado do referendo pode ser melhor compreendido quando analisamos o desenvolvimento da sua campanha. Depois de anos depreciando a UE , Cameron não conseguiu convencer os adeptos do Brexit de que ela era, afinal, o melhor dos mundos para se viver. Enquanto os partidários do divórcio prepararam-se cuidadosamente para aprová-lo. Foi a primeira grande campanha política onde o Facebook foi determinante . Cameron já não tinha capacidade política para convencê-los do contrário. Perdeu, renunciou ao cargo, abrindo espaço para a então desconhecida e conservadora Theresa May.

A partir deste ponto, a história é mais conhecida. May mudou-se para o número 10 da Downstreet certa de que conseguiria aprovar um divórcio vantajoso. Pretendia ainda mais, como firmar bons acordos internacionais sem a ajuda da União Européia, inclusive com os Estados Unidos. A decepção não tardou. Os dois últimos anos foram conturbados e muitos começaram a temer ficar sem a proteção das asas da União Européia. Outros, arrependeram-se do voto a seu favor .

Enquanto rodopiava, sem conquistar nada de concreto para atender às expectativas dos que querem sair da UE, May foi acumulando derrotas. Num ano, perdeu o apoio de 18 ministros. Nove por causa do Brexit. Por fim, correndo contra o tempo, pois sabia que passasse mais uma semana sem acordo, poderia perder o controle do calendário, a montanha pariu um ratinho. Conseguiu enfiá-lo goela abaixo nos ministros, mas quatro deixaram o barco após a reunião por discordarem do seu conteúdo. No Parlamento, a insatisfação transparece e cresce. Já há 28 parlamentares dispostos a puxar-lhe o tapete.

Há ainda numerosos obstáculos a transpor. No próximo dia 25, o texto será levado ao Conselho Europeu extraordinário para ratificação. A Primeira Ministra já anunciou que não cederá nem aceitará alternativa ao seu pacto. Em cima da mesa, reduziu a três as escolhas: seu acordo, nenhum acordo ou nenhum Brexit. Seu maior desafio será aprová-lo na Câmara dos Comuns até o final do ano, o que pode não acontecer. Se passar, será submetido ao Parlamento Europeu, onde também há possibilidade de rejeição, voltando tudo à estaca zero, mas com problemas adicionais.

O empenho dos líderes mais responsáveis da União Européia tem sido para as negociações chegarem a bom porto, caso contrário o ambiente poderá se tornar mais caótico. Sem uma boa solução, o que hoje parece quase impossível, todos perdem. Com o acordo técnico, uma espécie de rendição à UE e que não atende às demandas dos partidários do Brexit, as relações do Reino Unido com os demais membros do clube serão definidas em função de interesses pontuais. Não mais terá voz ou assento na UE,mas arcará com muitas obrigações. Ou seja, muito barulho por pouco. De sua parte, sem o Reino Unido, a UE empobrecerá em diversas áreas.

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