Jornalistas, não abaixem suas canetas!
Marcelo Senise*
10/06/2025
Ao longo da história, foram os extremos que forjaram os grandes pactos. Em momentos de guerra, ruptura, colapso ou recomeço, a humanidade não foi salva por fórmulas estáveis, nem por silêncios convenientes. Ela foi salva por vozes. Por denúncias. Por palavras que enfrentaram o medo. Por gente que não aceitou o absurdo como paisagem. E quase sempre, quem permaneceu de pé nesse cenário foi o jornalismo.
Hoje, estamos de novo nesse ponto. Mas desta vez, o inimigo não veste farda, não fecha jornais com tanques, nem institui censura em papel timbrado. Ele se apresenta como avanço, como inovação, como algoritmo, como inteligência artificial. Ele fala suave, com a voz de quem nunca existiu. E engana com uma imagem que não é real, mas é convincente o bastante para se tornar verdade.
Estamos aterrorizados — e com razão — pela potência da IA Generativa, capaz de criar vídeos falsos com rostos perfeitos, falas fabricadas, emoções sintéticas e narrativas visuais tão verossímeis que até o mais atento se torna vulnerável. Mas o que ainda não enxergamos — ou fingimos não ver — é que existe algo ainda mais profundo, mais sutil e infinitamente mais perigoso: a IA Preditiva.
Essa é a que não cria imagens, mas caminhos mentais. Ela não te mostra uma mentira. Ela te conduz a acreditar nela antes mesmo que ela exista. Ela coleta, cruza, calcula e prevê cada passo, reação e hesitação sua. Ela não precisa te convencer. Ela te antecipa.
E nesse cenário, cada like, cada clique, cada pausa no vídeo, cada deslizar de tela alimenta uma engenharia de manipulação tão precisa que já não estamos mais escolhendo nada. Estamos sendo conduzidos — como gado, pastoreado por uma vontade invisível, planejada, silenciosa e perfeitamente personalizada.
Como sociólogo e como marqueteiro político, sempre admirei — e confesso, muitas vezes invejei — a capacidade de síntese, precisão e objetividade dos amigos jornalistas. Enquanto nós articulamos cenários complexos e estratégias profundas, vocês têm o dom de transformar a essência em manchete, a denúncia em título, a urgência em texto de impacto. Essa habilidade, hoje, é mais valiosa do que nunca. Porque não estamos apenas diante de um debate técnico — estamos diante de uma disputa pela própria noção de realidade.
Este é um momento obtuso, confuso, de disrupção total e inevitável. Onde tudo parece urgência, mas poucas coisas realmente importam. Onde a polarização política virou distração — e a distração virou anestesia coletiva.
Já passou da hora de abandonarmos o discurso raso da polarização. Não é mais sobre esquerda ou direita. Não é mais sobre quem grita mais alto nos extremos.
É sobre quem ainda defende a realidade como um bem comum. E nesse campo, o jornalismo é a última trincheira entre o caos e a lucidez.
Porque o que está em curso não é apenas um risco à democracia — é a substituição da democracia por uma ficção algorítmica. E quando tudo pode ser fabricado com perfeição técnica, a verdade se torna obsoleta. E com ela, a liberdade de decidir.
Se as próximas eleições forem travadas sem regulação, sem rastreabilidade, sem filtros de verdade… não estaremos mais elegendo ideias, mas assistindo à consagração da ilusão. E será tarde demais para qualquer reação.
Por isso, falo aqui com toda a clareza: jornalistas, vocês são a última linha. A última linha entre o real e o sintético. Entre o fato e o espetáculo. Entre o esclarecimento e a manipulação. Se vocês cruzarem os braços, o último bastião da verdade cairá.
Este artigo não é uma análise. É um apelo. Um apelo para que os veículos de comunicação, os editores, os repórteres, os colunistas, os âncoras, os jovens estagiários das redações e os veteranos da imprensa entendam a magnitude do que está em jogo.
O jornalismo que se omite hoje será substituído por avatares amanhã.
E esses avatares vão sorrir, parecer convincentes, agradar a bolha — e mentir com a precisão de quem não precisa mais ter alma.
Há pouco tempo.
O Congresso ainda hesita.
As plataformas fingem autorregulação.
O Judiciário ocupa espaços que não lhe pertencem.
E o cidadão? Está sendo conduzido — sem saber — por sistemas que só obedecem ao lucro e ao controle.
Se nada for feito agora, o silêncio será irreversível. E não haverá manchete que consiga nos acordar do que já teremos perdido.
*Marcelo Senise é Presidente do IRIA – Instituto Brasileiro para a Regulação da Inteligência Artificial, Sócio Fundador da Social Play e CEO da CONECT I.A, Sociólogo e Marqueteiro, atua há 37 anos na área política e eleitoral, especialista em comportamento humano, e em informação e contrainformação, precursor do sistema de análise em sistemas emergentes e Inteligência Artificial. Twitter: @SeniseBSB / Instagram: @marcelosenise
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