"Lembro dos tempos de menina por volta de mais ou menos dos sete anos quando a senhora do fio da vida deitava todas as noites comigo e me botava para dormir, velava meu sono, depois deitava-se ao meu lado e dormíamos juntas, creio que aí comecei apreciar a sensação tão aconchegante...", Allana Souto
Leia todo o texto da crônica de Allana Souto, originalmente publicada no no site Semeadura.com, no dia 15 de março de 2015, e hoje republicada no meu blog...
UMA CARTA PARA NANÃ
15/03/2015
Por Alanna Souto
Lembro dos
tempos de menina por volta de mais ou menos dos sete anos quando a
senhora do fio da vida deitava todas as noites comigo e me botava para
dormir, velava meu sono, depois deitava-se ao meu lado e dormíamos
juntas, creio que aí comecei apreciar a sensação tão aconchegante e
protetora de um colo feminino depois dos braços materno, foi o período
que ela veio morar conosco em casa, Vovó estava de passagem para algum
lugar que ela dizia que só ainda não havia partido porque ela não
encontrava as sandálias em todas as vezes nas quais o Vovô a visitava em
seus sonhos para buscá-la, até que um dia ela deve ter encontrado e se
foi...e assim construir meu imaginário na infância a respeito da morte,
uma passagem para algum lugar fora da dimensão terrena a qual um ente
querido desencarnado viria de longe ajudar atravessar o portal,
dependendo das atitudes da pessoa seria levada para os “céus” ou
“infernos” na minha ótica cristã quando menina.
Vovó partiu, contudo deixou para os netos toda simbologia e presença de espírito — que
anos mais tarde depois da fase juvenil transviada e atéia ao me
debruçar na busca do misterioso já crendo nessa inteligência “quântica” e
transcendental que originou universo, mediante os processos de
metamorfose da vida a aqueles que se propõe transformar-se — quando
nos encantos do conhecimento da Umbanda e dos estudos dos Orixás passei a
ter acesso em uma ótica não mais somente advinda da formação das
ciências humanas e sociais, mas percebendo o enfoque conectivo e
simbólico dessas divindades ou emanações divinas como uma proposta mais
libertadora de si e das agruras do mundo, um ideal mais liberto de toda
forma de poder e doutrinações ideológicas.
Vovó o elo
do fundamento de Nanã, a mãe milenar do útero cósmico, traz consigo
tudo aquilo que é mais antigo e terno. Por ser tão próxima da Criação,
co-criadora do sopro das vidas e do apagar delas, amada e (des) temida,
protetora sublime de todos os frutos oriundos da gestação, observa cada
ser como uma estrutura única parida de sua cria que deve ser conduzida e
esgotada de seu ciclo cármico sob os passos dançante de Oya de Balé, a
única irmã das emanações Mater dos desdobramentos do Uno que adentra o
seu vale das almas para de lá encaminhar em direção às suas mãos
evolutivas aqueles seres transgressores da lei divina em ação.
Nanã a
vovó maior que acalentou, embalou, pacientou e emantou toda nossa
ancestralidade africana empedernida de suas raízes, forçados a girarem
em torno da árvore do esquecimento pelos senhores da escravidão, antes
de embarcarem das costas africanas rumo ao nuevo mundo, para assim
perderam a memória dos seus antepassados, bem como de reagirem a vilania
de seus algozes, contudo a força grandiosa da velha mãe, a grande
senhora dos povos ancestrais revivifica e re-significa suas
reminiscências trazidas em suas almas nuas, sem roupas e pertences,
arrancados do seio de sua família e brutalmente separados de seus
filhos, coisificados de sua história, chegam nas Américas, nos litorais
atlânticos e nos rios da Pan-Amazônia recriando toda sua identidade,
transvestindo-se nos quilombos e mocambos, demarcando sua voz e
liberdade pela direito de viver com dignidade.
Dos
troncos formativos de nossos antepassados e das árvores genealógicas
amazônicas que nos liga tão fortemente com esses povos guerreiros que se
misturaram, uniram-se e se miscigenam, africanos e indígenas, Vovó Nanã
é a estrela cadente que se desloca dos céus pantanosos mais longínquos
para levar sabedoria de suas mitologias e ciência nos campos do saber
desses povos para seus descendentes transmitirem às suas gerações de
modo a (re)constituir essa vivência libertadora, curativa dos males
físicos e da alma e assim nos tornamos na escalada evolutiva da
transformação de si verdadeiros revolucionários capazes de sacudir as
estruturas obsoletas desse “mundo tão desigual, de um lado esse
carnaval, do outro a fome total...”, já cantava a língua de Gil.
Deste
tronco evolutivo de Nanã que ilumina as constelações e vidas estelares
que quase invisíveis a limitada visão humana, os kaapor reconhecem
quando suspendem suas vistas para o céu ao perceberem o movimentar de
uma estrela cadente e dizem “lá vai Mahyra, o nosso avô!”, ergo minha
cabeça e reconheço lá em cima nos altos das estrelas aquela rosa branca
de Afuá que ninava meu sono naquelas noites da minha meninice, quiçá até
hoje.
Saluba Nanã!
Para minha Vó Branca (10 / 04 / 1911 – 04 /10/ 1989)
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