(15/10/2013)
Em meio a tantas outras, naquele navio negreiro -
prenúncio de cativeiro - vindo de Angola, estava uma menina: Catarina!
Precocemente arrancada de suas raízes e de seu solo
natal, era levada, pelas águas e pela força, a um destino ao mesmo tempo
desconhecido e temível. Aquela menina, afastada de seus antepassados, iria
cumprir uma longa jornada que a traria, por fim, ao nosso convívio.
E foi ali, sentada num toco, que Vovó Catarina, segurando
sua bengala e acariciando um rosário, me contou sua história.
Dos tempos de menina quase nada restou, ao menos nada que
quisesse contar-me. Sua narrativa já a encontra adulta, cativa numa fazenda,
numa terra chamada Brasil.
Espremida entre outras negras, numa senzala, Catarina tem
por obrigação trazer ao mundo outras almas, lucro para seu senhor.
Suas mãos de parteira habilidosa aparavam aquelas
criaturas que nasciam sob a insígnia da escravidão. Escravidão de almas, de
direitos, de raízes, de querer, de tudo! Marcados todos, com o sinal do dono,
marcados todos para apenas sobreviver. Cada criança nascida enchia seu coração
de dor pelo destino que lhes estava reservado.
Seu compromisso perante seu senhor não era apenas trazer
ao mundo aqueles pequenos infelizes, mas sim “peças” fortes e capazes para o
trabalho.
Se o destino deixava que lhe escapasse algum, era
severamente punida pelo prejuízo causado. Por isso, pagava com dor, corpo castigado,
preso ao tronco, cada alma que Zambi levava.
Cada negra que paria, reforçava nela a decisão de jamais
dar, à escravidão, filhos seus. As ervas que conhecia a ajudavam nesse
propósito, tornando-a estéril. Deixou-se, também, “enfeiar”, na tentativa de
não servir aos propósitos reprodutivos de seu senhor.
Ficou feia por fora, mas conservou a beleza interior que
já havia nascido com ela, a força de seus ancestrais e a profundidade de suas
raízes, embora precocemente arrancadas, ainda germinavam nela um desejo ardente
por liberdade, senão para si, para os de sua cor.
Um dia, a natureza trouxe à casa grande a dor de um parto
difícil. Mesmo num leito confortável, entre lençóis limpos, o sofrimento da
senhora e a angústia de seu senhor eram iguais às de qualquer negro e acabaram
por trazer, àquele quarto, a experiência de Catarina.
Chamada às pressas, como último recurso, fez aquilo que
ninguém tivera a coragem de fazer. Suas mãos negras e seguras penetram as
entranhas daquela moça branca e colocaram o bebê na posição adequada para
nascer.
Todo o peso da responsabilidade transformara-se em alívio
e alegria. Jamais quis perder alma alguma e daquela, em especial, dependia sua
vida. A negra, acostumada aos açoites era, agora, presenteada com gratidão. Ao
trazer ao mundo o sinhozinho, cai nas graças dos senhores, recebendo o
privilégio de não mais ser presa ao tronco.
Os anos passam, o sinhozinho cresce e Catarina envelhece.
A força que os uniu, no dia do nascimento, faz dele seu protetor,
presenteando-a com uma casa, fora da senzala. Ali, Catarina experimenta a única
sensação de liberdade que conhece: a solidão. O silêncio e o recolhimento só
são quebrados pelos gritos: “Catarina, corre!”.
A velha senhora avança pelos pastos, correndo e orando,
pois sabe que tem negra parindo. Sua vida é levada assim, com suas mãos
trazendo ao mundo outras vidas. A mulher que nunca foi mãe é agora avó de
muitos, por isso passa a ser chamada de Vovó Catarina.
A menina negra, contrabandeada de sua terra natal pela
ganância, arrancada de suas raízes pela cor da sua pele, vendida como
mercadoria, açoitada por feitores, cumpre o seu destino de parteira. Traz ao
mundo, dentro da senzala imunda, dezenas de crianças de sua cor, para
compartilhar seu próprio sofrimento, o sofrimento reservado àqueles que não
possuem direito, nem ao menos ao próprio corpo.
Um único nascimento branco dá a ela o direito irrecusável
de viver longe do tronco. Que cativeiro é esse que separa as pessoas pela cor
da pele?
Tantas almas brancas maculadas de sangue. Tanta pele
branca tingida com o negro da escravidão. Tantas vidas presas ao fardo de ter
que pagar com reencarnações, cada elo da corrente que prendeu um ser humano ao
seu semelhante.
Vovó Catarina, do alto de sua sabedoria, diz saber que a
escravidão, tanto quanto cruel, não foi inútil.
Serviu para resgatar os erros cometidos por seu povo,
quando ainda encarnados em terras africanas. “A justiça de Deus não comete
enganos.”
Cada negro aprisionado estava, também, acorrentado aos
seus próprios erros, resgatando-os, um a um, com dor, humilhação e sangue.
Diz ela: “Não há povo mais sofrido, até hoje, do que o
que tem a mesma cor que a minha. Cada preto e preta, que hoje está trabalhando
nessa casa, tem seus próprios pecados para pagar, e um dia, se assim for
preciso, voltarão reencarnados para quitar suas dívidas”.
Vovó Catarina exibe até hoje, em suas mãos, as marcas dos
ferros que a prenderam ao tronco. Ao permitir que eu as visse – suas mãos e
suas cicatrizes -, abriu meu coração e meus ouvidos para os detalhes de uma
história que ainda não haviam sido contados.
Apenas uma vez vi uma névoa de tristeza embaçar seus
olhos, que possuem uma alegria quase infantil. Ao se referir ao resgate que seu
povo teve que suportar com cativeiro, imaginei, porque apenas posso imaginar, o
que se passou naquelas planícies africanas, banhadas pelo oceano Atlântico;
quando ainda se falava apenas o Banto, com todos os seus dialetos; bem antes de
se tornar colônia portuguesa.
Se um dia, essa história for contada, espero estar lá
para ouvir.
Por enquanto, nos resta respeitar a dignidade com que
estas almas suportaram sua dor.
(Fonte: Terreiro do Pai Maneco – Corrente do caboclo
Akuan)
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