João Batista Azevedo
O rei da mentira
Dizem que passamos a metade da
nossa existência mentindo. E que, com muita frequência, a mentira é necessária.
Tão antiga quanto a humanidade, ela faz parte da nossa vida. Está presente nos
jornais, nos livros da melhor literatura, em documentos de governo, nos
discursos de políticos e, dizem, até na Bíblia.
Há um certo tempo uma pesquisa
mostrou que os políticos são os maiores mentirosos. Depois, pela ordem, vieram
os jornalistas, os comerciantes e os publicitários. Hoje por certo teria os mesmos resultados.
Certamente ao menos o maior percentual incidiria sobre os políticos. Em São
João Batista, apesar de se ter muitos políticos mentirosos, tem-se também
mentirosos que não são políticos.
Na maioria das vezes, a
mentira não passa de uma bobagem. Mesmo assim, o maior teólogo da Igreja
Católica, São Tomás de Aquino, deu-se ao trabalho de classificar a mentira em
três espécies ou graus: a divertida, a utilitária e a daninha, capaz de causar
graves prejuízos.
O nosso personagem se enquadra
na primeira das espécies. Aprígio mentia com arte. Mentia de maneira cômica.
Quem o via mentindo, morria de ri, enquanto ele contava de maneira séria suas
lorotas. Quando o conheci ele beirava uns sessenta anos ou mais. Já era idoso.
Mas sagico o bastante para montar num cavalo e ir até a sede de São João fazer
suas compras. Ele se aviava no comércio de meu pai, Zé de Félix. Mas por onde
passava deixava a sua marca registrada.
Morava pras bandas do
Capim-açu. Era conhecido por demais nas redondezas. Constantemente era
requisitado para contar das suas. De maneira que poucos sabiam quando ele de
fato estava falando algo que não fosse, gabolice, sofismas, mentiras. Dizia ser
amigo íntimo de Fidel Castro, ditador de Cuba, e que até o teria sido
companheiro de luta na revolução cubana. Desta amizade e gratidão, o presidente
cubano vez por outra mandava buscar e deixá-lo de helicóptero só para prosearem
nos jardins do palácio do governo em Honduras. Também contava em suas pilhérias
que visitava muito a Guatemala. Tinha também relações internacionais com seus
governantes.
Aprígio ganhou fama de
mentiroso. Mas nunca ligou pra isso. Quem o contrariasse nas suas falações
estaria perdendo tempo, pois aquilo era a sua arte.
Contava que certa vez em
andanças pela região amazônica, arrumou serviço numa empresa que abria a
Transamazônica, a estrada que ligaria a região ao resto do país. Estava ele ali
no acampamento em plena floresta na companhia de mais alguns serviçais, quando
foram atacados por uma onça pintada grande e muito feroz.
Seus companheiros foram logo
abatidos pelo feroz animal enquanto ele, valente, passou a lutar com a onça.
Quando a onça já cansada, afastou-se um pouco, Aprigio se pôs a correr
desesperadamente até buscar abrigo dentro de um tronco de uma enorme árvore.
Entrou por entre a enorme árvore sempre subindo até acomodar-se. Lá recuperou
as forças e quando já imaginava estar livre da onça, ouviu um esturro macabro e
ameaçador que vinha da entrada da grande fenda do tronco da árvore. Era a onça
que subia devagarinho para seu ninho, exatamente no oco da árvore. Segundo ele,
Aprígio, respondera com um grito tão grande ao mesmo tempo em que segurou-se
com força em algo que lhe parecera uma corda ou ponta de um cipó que rentia
sobre sua cabeça. Ao mesmo tempo sentiu seu corpo ser arremessado para cima em
direção a uma claridade que se avistava sobre a copa da grande árvore. Como um
furação viu seu corpo ser arremessado ao ser puxado por aquilo em que se
segurava. Aquilo lhe tirou do oco dá árvore e das garras da velha onça. Caído a
léguas de distância, percebera que fora salvo ao se agarrar ao rabo de uma
outra onça, provavelmente um filhote da velha pintada. Dizia que após esta
aventura, pediu demissão do serviço e voltou pra casa.
Mentirosos desse grau podem
desenvolver múltiplas personalidades. O nosso herói parecia ter muitas. De uma
outra vez, o vi no comércio de meu pai. Estava com um filete de sangue a sair
pelo canto da sua boca. Perguntei o que teria provocado aquilo. Prontamente
respondeu: “Estava eu a descer apressadamente de um helicóptero em meu
terreiro, após uma das viagens a Cuba, quando tropecei e caí, ferindo a boca”.
Era simples assim.
Também é celebre aquela em que
se encontrava numa missa pras bandas de Cajapió. Já era umas quatro horas da
tarde. No horizonte formou-se um temporal. Escureceu de repente. Um vento forte
anunciava que a chuva vinha com força e sem demora. Aprígio fora aconselhado a
tirar os arreios do cavalo e que deixasse a chuva passar. Confiante no seu
cavalo, rejeitou o convite. Montou-o e partiu ao mesmo tempo em que já se
precipitavam os primeiros pingos da chuva. Aprígio disparou num galope para a
sua casa que ficava a cerca de uns dez quilômetros do lugar da missa. A chuva
com vento forte também corria atrás do cavalo e do cavaleiro. Por fim após
desafiar a natureza, o nosso herói chegara em casa e apenas a garupa do cavalo
estava molhada. A chuva continuou o seu curso, derrotada pela rapidez do cavalo
de Aprígio.
Não há como negar, o mentiroso
é um sujeito inteligente. Aprígio deixou nome na história. Hoje, virou até
adjetivo com significação de mentiroso. A muitos que costumam inventar coisas,
dá-se logo o nome de Aprígio ou Apriginho. Conheço muitos, mas nenhum com a
sagacidade narrativa do velho contador de lorotas.
Como se vê, em qualquer caso,
a mentira precisa ser bem contada. Ele era único em nosso lugar. Haverá sempre
alguém que vai contar uma que ele contava.
De outra vez, inquiri-lo a
contar uma rapinha.
- Não posso – respondeu ele.
- Por que? Perguntei meio
preocupado com o semblante sério que ele fizera.
- Estou sem tempo. Vim aqui na
sede só comprar um hábito para um criancinha que morreu.
Curioso, perguntei de que
então teria morrido a tal criança. Ele respondeu-me já em retirada.
- A menina estava num
aniversário e foi encher um balão desses de aniversário e o balão espocou
causando a morte na criança.
Fiquei pasmo. Vi ali o quanto
ele era mestre na arte de mentir.
Hoje Aprígio não está mais
entre nós. Deve estar contando das suas em outro plano, mas ficou na história.
E isto é uma verdade!
(*) Crônica que integra o nosso primeiro livro
em fase de construção a ser publicado em breve.
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