James Walker Júnior*
Não resta resquício de dúvida sobre a personalidade agressiva do deputado Daniel Silveira, tampouco que o mesmo tem uma conduta incompatível com o cargo e, reiteradamente, pratica e incita atos atentatórios para a desconstrução da ordem democrática.
Por suas condutas o referido deputado deve ser processado
criminalmente e no Conselho de Ética e, na hipótese de comprovação dos fatos,
após as respectivas instruções processuais, e o efetivo exeio do direito de
defesa, responsabilizado nos termos da lei.
Até aqui não há qualquer dificuldade de compreensão dos
fatos. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, através do inconstitucional
Inquérito das Fake News, mitigando o sistema acusatório, pois reúne qualidades
de investigação, julgamento dos fatos e até de vítima, determinou a prisão em
flagrante (por mandado) do deputado Daniel Silveira, e aqui a situação perdeu
vergonhosamente o controle.
Ainda que muito decantada, vale a lembrança da previsão
constitucional sobre prisão de deputados:
CF/88
“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil
e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.
§ 2º Desde a
expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos,
salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos
dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da
maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.”
A cronologia foi a seguinte:
(i) decisão
monocrática para expedição de mandado de prisão em flagrante (inovação sem
respaldo legal ou constitucional), com efetivo cumprimento; (ii) decisão
confirmada pelo Plenário do STF; (iii) realização de audiência de custódia; e
(iv) prisão confirmada pelo Plenário da Câmara dos Deputados.
Estamos diante de uma situação absolutamente anômala, que
põe em xeque o sistema de justiça criminal brasileiro, especialmente quando a
anomalia foi gestada no Tribunal Constitucional, a mais alta Corte do país.
São tantas as irregularidades que fica difícil organizar,
mas vejamos:
(i) prisão decretada de ofício, fulminando o “judex ne
procedat ex officio”, consequentemente, esvaziando-se o sistema acusatório e os
contornos de atuação de cada ator processual, gerando-se, igualmente, a
suspeição de todos os ministros do STF, na medida em que agiram em causa
própria; (ii) as questões da flagrância se protraindo no tempo e da
inafiançabilidade, são tão inovadoras quanto perturbadoras, desenhadas
casuisticamente para atender a esse caso, sem encontrar respaldo na doutrina e,
sobretudo, nas próprias decisões da Corte;
O último tópico requer destaque, pois foi exatamente essa
questão que motivou a redação do texto:
(iii) afinal, o deputado segue preso a que título?
Sabemos todos que o Plenário da Câmara referendou a
prisão, que desde sempre fora decretada como “prisão em flagrante “.
A pré-cautelaridade desse tipo de prisão impõe, a partir,
inclusive, de incontáveis manifestações do próprio STF, que o preso seja
apresentado para a audiência de custódia em até 24h (art. 310 do CPP com a nova
redação a partir da Lei 13.964/19), não apenas para cumprir uma mera
formalidade, mas para avaliar a legalidade do ato (hipótese de relaxamento em
caso de ilegalidade), manutenção da prisão - com a sua conversão em preventiva
- a análise da possibilidade de aplicação das cautelares diversas da prisão,
descritas no art. 319 do Diploma Processual Penal, tanto quanto a hipótese da
concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança.
Ora, não sendo a prisão em flagrante uma modalidade de
cautelar, consequentemente, deve ser substituída na audiência de custódia. Não
obstante, a mesma foi realizada sem decretação de preventiva, não houve,
igualmente, representação do Ministério Público neste sentido e, sendo assim,
ainda que o Plenário da Câmara tenha referendado a “prisão em flagrante”, a não
realização de nova audiência de custódia, em 24h, para consequente conversão em
preventiva (ou aplicação das cautelares diversas da prisão), TORNOU AINDA MAIS
ILEGAL essa prisão que, até aqui, já era surreal, para além de muito ilegal.
Estamos diante de uma nova ilegalidade, relativamente a
essa prisão que já nasceu absolutamente ilegal. Isso em razão de não haver
“conserto” para a manobra contorcionista empregada pelo STF para decretação do
ato.
Afinal, em nome do estado de direito, tantas vezes
mencionado pelo STF, pergunto: o deputado está preso a que título?
Segue “preso em flagrante”?
Sem conversão em preventiva? Sem nova audiência de
custódia, vez que a anterior não cumpriu sua função?
É absolutamente angustiante a situação, não há sequer
como explicar aos meus alunos e ex-alunos, a partir de uma construção lógica do
raciocínio jurídico, o que efetivamente está se passando.
Esse episódio marca de forma indelével a existência do
Supremo Tribunal Federal, como uma Corte na qual, em determinada quadra
histórica do país, atuando em causa própria, violou a Constituição Federal,
inovou perigosa e arbitrariamente nas regras do processo penal, escrevendo uma
das mais vergonhosas páginas da história de um Tribunal de tantas glórias.
Em um passado pouco distante o Deputado Daniel Silveira
bradava contra direitos humanos, desde sempre adepto do inominável jargão
“bandido bom é bandido morto”, pediu a volta do estado de exceção imposto pelo
AI5 e, neste momento, precisa de tudo aquilo que irracionalmente ousou atacar,
direitos humanos, legalidade, garantias constitucionais etc.
Esse comportamento do deputado, infelizmente, já o está
castigando, pois segue preso, sem os nossos aplausos (diretos humanos para ele,
já!!) não obstante, deixa uma lição, e um alerta, ao próprio STF, extraído da
genialidade serena de Ruy Barbosa: “as leis que não protegem nossos
adversários, não poderão nos proteger”.
Que os Senhores Ministros guardem bem essa máxima!!
*James Walker Júnior é advogado criminalista, professor, mestre e doutorando em ciências jurídicas, membro efetivo do IAB, Conselheiro da OAB-RJ, presidente da ANACRIM - Associação Nacional da Advocacia Criminal.
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