Nossa vacina
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Enquanto a manhã se espreguiçava, a cidade acordou assustada. Labaredas lambiam os prédios do tradicional Colégio São José.
Tão altas que pareciam escalar os céus. Coloridas, ameaçadoras, disputando espaço com a fumaça.
Não havia corpo de bombeiros e a população, munida de baldes e apetrechos afins, ajudou como podia.
Comparecemos minha irmã e eu ao local. O trabalho era incrível. Casas próximas abriram suas portas para que livros, documentos, quadros, o que pudesse ser salvo, graças à rapidez e esforço de alunos e professores, pudesse ser abrigado.
Crianças ainda, ficamos paradas, junto à cerca de arame que se erguia, a alguns metros dos prédios em chamas.
Aquilo nos parecia inacreditável. Conhecíamos aquelas salas, sobretudo as mais antigas, em madeira, que abrigavam as classes do ensino fundamental.
Lembramos da biblioteca, cujas obras preciosas da literatura infantojuvenil, dicionários, enciclopédias e livros didáticos tanto havíamos folheado.
A destruição foi total. E pensamos: Onde iremos estudar, agora?
A solidariedade não se fez esperar. Outros educandários cederam salas de aula para que os estudantes não tivessem seu ano letivo prejudicado.
Lembramos que nós, das últimas séries do fundamental, fomos estudar em colégio em construção, em bairro distante.
Era setembro. Nem todas as janelas tinham vidro instalado, nem todas as salas tinham portas.
Os ventos sulinos eram nossos companheiros, quase todos os dias, trazendo-nos ares de uma primavera europeia.
As chuvas eram constantes. Andávamos muito para alcançar a escola, em ruas alagadas e lamacentas.
Divertíamo-nos com a água corrente da rua. Ríamos a valer quando afundávamos os pés na lama e eles retornavam sem as botas, que haviam resolvido ficar escondidas.
O mais impressionante é que nenhum de nós desistiu das aulas. Comemorávamos, sim, os dias de sol, sem aguaceiro.
Íamos e voltávamos em grupos. Os mais afortunados tinham os pais que os levavam e buscavam de carro.
Um luxo. Às vezes, um deles nos oferecia carona até onde havia calçadas, asfalto e tudo era mais fácil.
Inacreditável que não tivemos resfriados, gripes ou quaisquer outros problemas graves de saúde. Pensando hoje, damo-nos conta de que a vontade de estudar, de concluir o ano, a alegria com que enfrentamos todas as adversidades, nos manteve assim.
A alegria foi nossa vacina.
Enquanto trabalhamos montando bazares e vendendo quinquilharias, artesanato, bolos, doces e salgados para angariar fundos para a reconstrução do nosso Colégio, estudamos e vencemos.
E nossa amizade se fortaleceu. Ainda lembramos dos rostos dos colegas, das risadas espontâneas, até das quedas que, vez ou outra, um de nós levava, escorregando na rua lavada pela chuva. Um verdadeiro escorrega.
Bons tempos. Velhos tempos. Vividos. Superados. Fizeram-nos crescer.
Boas lições para os dias atuais, quando os anos fazem pressão em nossos corpos, a mente estabelece estágios na preguiça.
Bom recordar que podemos vencer, hoje, ainda e sempre, o que quer que nos alcance.
Coragem, determinação, vontade ativa. E Deus conosco.
Redação do Momento Espírita, com base em fatos ocorridos na cidade de Erechim, Rio Grande do Sul, em 1963.
Em 9.9.2024
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