O ALGOZ DE NOSSAS FRAGILIDADES
Acadêmico: José Renato Nalini*
O Brasil teria sido a primeira vítima de Sílvio Romero, para quem o país pouco significava diante do peso da mentalidade europeia: “Desgraçado mestiço, que esmorecia à margem dos grandes rios, na sua indolência tropical, deixava-se adormecer sob a capa dessas mesmas palmeiras que Gonçalves Dias celebrou em seus versos, embalado nos sonhos da Jurema”
O algoz de nossas fragilidades
O Brasil sempre desmereceu o brasileiro. O complexo de vira-latas prevaleceu ao ufanismo. Confesse-se que é difícil mesmo conservar o orgulho quando se vê a irracionalidade superar o bom senso, principalmente com os desvarios da União. Com tudo para dar certo, a má condução da política pública faz tudo dar errado.
É da tradição pátria reservar a veneração para o Velho Continente e para a grande hegemonia ocidental que continua a chamar nossa região como a América Latrina. Os nacionais continuam a não ser lidos. Desde sempre, eram lidos por favor e com malevolência. O jovem Capistrano de Abreu, talvez o primeiro crítico literário tupiniquim, numa conferência pronunciada em 1875, proclamava a verdade de que nossa literatura não podia se desenvolver plenamente, por causa da enorme atrofia de suas condições orgânicas.
Como Capistrano enveredou pela história, deixou a Silvio Romero a missão de disciplinar o caos que então imperava no pensamento e na crítica. Celebrava-se o cientificismo, a combater o idealismo romântico e a repudiar os artifícios do indianismo, a pouca expressividade da raça, a inviabilidade do meio e o atraso de nossa cultura.
O combate ao desarranjo do pensamento e da cultura converteu Silvio Romero o algoz das nossas fragilidades. Isso logo provocou reação. Araripe Júnior, ao escrever sobre “Etnologia Selvagem”, afirmou que a crítica de Silvio agredia ideias, abstrações e princípios filosóficos, com a única intenção de encarná-los num homem ou num grupo de homens capaz de irritar-se o suficiente, para que a luta se tornasse mais pitoresca e interessante.
O Brasil teria sido a primeira vítima de Sílvio Romero, para quem o país pouco significava diante do peso da mentalidade europeia: “Desgraçado mestiço, que esmorecia à margem dos grandes rios, na sua indolência tropical, deixava-se adormecer sob a capa dessas mesmas palmeiras que Gonçalves Dias celebrou em seus versos, embalado nos sonhos da Jurema”.
Foi essa a impressão que ficou em relação a Sílvio Romero: o demolidor rude que, segundo Araripe Júnior, convertia a sua crítica num “azorrague empunhado por mão vigorosa e empregado com ira e violência”.
Violência exercida até contra Machado de Assis, que Sílvio Romero considerou nada mais do que um representante incapaz da sub-raça, inteiramente inábil para a criação literária: poeta de terceira ou quarta ordem, prosador enfadonho que só fazia imitar o humor e a ironia dos escritores formados nas civilizações superiores, além de trôpego estilista, embotado por uma perturbação qualquer nos órgãos de fala".
Crítica cruel, que mereceu resposta de Lafayette Rodrigues Pereira. Em suas “Vindiciae”, afirmou que Sílvio Romero só sabia obter pelo escândalo do insulto o que não podia conquistar pelo talento. Foi por causa desse temperamento agressivo que até Tobias Barreto, de quem Sílvio foi arauto e um dos mais incansáveis divulgadores, registrou, em seus “Estudos Alemães”, que a crítica literária de Romero, menos que reflexão literária, era coisa de polemista descomprometido com os juízos estéticos, por ser a polêmica naturalmente subjetiva e a crítica exatamente o inverso.
O filósofo criador da Escola de Recife não poupou críticas ao crítico. Para Tobias Barreto, os estudos críticos de Sílvio Romero eram trabalho de crítica retroativa, que se resumia a um autêntico processo de anatomia literária, onde o escalpelo faz a primeira figura, sempre firme e inexorável, entrando as obras e os autores estudados apenas como preparados anatômicos metidos em espírito, a fim de serem conservados para uma época mais esclarecida.
A exuberância individual de Sílvio é o real motivo que o leva a ler os autores em lugar das obras, a julgar a cultura através da raça e a condenar mais os homens que os princípios. A crítica de Romero é acusada de contradições, inexatidões de fato e de juízo, repetições, generalizações, parcialidade. Suas concepções são consideradas emperradas, tanto pela associação arbitrária entre estética e temperamento, quanto pela conversão arbitrária em critério de hegemonia cultural.
Em 1945, as reflexões de Antonio Cândido, então um jovem estudioso, são publicadas em “O método crítico de Sílvio Romero”. Para ele, Sílvio Romero era um homem embriagado pelo advento de tantas disciplinas novas que lhe prometiam a chave do conhecimento. Tal cenário instigante fez Sílvio ousar: quis transformar a crítica numa instância capaz de nos libertar do peso das raças inferiores, dos rigores do clima, do ensino jesuítico superado, dos vícios políticos coloniais e dos excessos do romantismo.
Era o algoz de nossas fragilidades empenhado em ser o precursor de nosso potencial cultural. Uma inovadora redenção do perverso demolidor de livros, temido por todos os intelectuais de sua época.
Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 19 06 2025
*José Renato Nalini é Acadêmico da Academia Paulista de Letras
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