sexta-feira, 20 de junho de 2025

Piada da Cadeia - Por Marcelo Figueiredo


Piada da Cadeia

Marcelo Figueiredo*

16/06/2025 

A frase: “É rindo que se castiga os costumes”, é uma tradução para o português da locução latina: “ridendo castigat mores” que significa, “rindo corrige os costumes” ou “corrigindo os costumes rindo”.

A ideia por trás desta locução é que a sátira, a crítica e a ironia, quando expressas com humor, podem ser um meio eficaz de denunciar e corrigir comportamentos e práticas sociais que se consideram inadequados ou prejudiciais.

A expressão latina é antiga e tem sido usada ao longo da história para descrever a função da comédia e da sátira na crítica social. O riso quando dirigido a costumes e comportamentos, pode ser uma ferramenta poderosa para despertar a reflexão e promover mudanças sociais.

A frase latina é frequentemente associada a Abbé Jean de Santeul (1630-1697), e encontrada em Molière, Marivaux e Gil Vicente. O humorista reconhecido no Brasil, Leonardo de Lima Borges Lins (Leo Lins) foi condenado a oito anos de prisão e multa de mais de 2 milhões de reais de indenização, com base na Lei 14.532/2023, por piadas consideradas racistas e capacitistas.

Acho muito perigoso o precedente judicial da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo (processo nº 2024.4.03.6181) Como pode uma piada – textualmente reconhecida na sentença- e não uma apologia ao racismo levar a uma condenação de oito anos?

Nenhuma pessoa é obrigada a gostar de um comediante ou de seu elenco de piadas, mas quando se dispõe a comparecer ao seu espetáculo deve ter em mente que o comediante tem ampla liberdade artística para fazer o público rir.

Nem todas as piadas agradam a todas as pessoas. Isso parece evidente.

Humor não é necessariamente opinião, assim como o humorista não tem obrigação de ser um bom exemplo.

Há sim ampla liberdade artística no trabalho de um humorista. As pessoas não são obrigadas a gostar das piadas, podem criticar o humorista, mas daí a condená-lo por contar piadas vai uma longa distância. Como dizia Millôr Fernandez, “nenhum humorista atira para matar”.

Qualquer humorista interpreta no palco um(a) personagem na construção do texto que apresenta ao público, com larga utilização de figuras de linguagem, hipérboles, metáforas, ironias, provocações etc.

Como explica o próprio comediante condenado na internet, uma análise literal do texto não se aplica na estrutura do cômico. A comédia não deixa de ser uma obra teatral, uma ficção. O comediante é uma personagem e não uma “pessoa proferindo discursos” como ressaltou a sentença.

Por que há crime? Creio que o legislador não foi feliz ao colocar de maneira genérica a existência de crime simplesmente por fazer declarações depreciativas ou preconceituosas contra as pessoas.

Parece irrazoável e desproporcional, além de caracterizar um Estado policialesco.

O humor faz exatamente isso em muitas de suas vertentes. É sua função trabalhar com todas as mazelas da sociedade sem se preocupar em agradar gregos ou troianos.

É verdade que o show foi também colocado no YouTube, divulgando pela internet suas piadas. Mas será que isso seria suficiente para condená-lo? Não creio.

Todas as testemunhas da defesa de diversos extratos sociais e profissões afirmaram não haver preconceito ou discriminação em suas apresentações.

Como bem destacou o editorial do Jornal “O Estado de São Paulo”, a condenação de um comediante à prisão marca um ponto de inflexão alarmante na trajetória democrática brasileira. A criminalização do discurso incômodo sob o pretexto de proteger vulneráveis beira a censura.

Nada mais perigoso do que essa nova ortodoxia judicial que confunde o direito de não ser agredido com um suposto direito de não se sentir ofendido- e que torna o Poder Judiciário- em tribunal moral, e o artista em réu político.

Nesse cenário, é fundamental distinguir o que seria discurso de ódio — entendido como incitação à discriminação, hostilidade ou violência — do que é apenas humor de mau gosto ou provocativo. A análise não pode se basear apenas na estética ou na moral de quem julga, mas deve considerar o contexto e a percepção da mensagem como cômica. Ainda que algumas piadas reforcem estereótipos nocivos, isso não significa automaticamente que configuram crime. O exagero e a hipérbole fazem parte da linguagem humorística, e usá-los como critério de punição pode abrir perigoso precedente para a censura. O mau gosto, por mais questionável que seja, não pode ser equiparado à incitação ao ódio.

A Lei 14.532/2023 merece sérios reparos ou total revogação porque ela não protege o meio artístico ou a cultura, dever constitucional, mas pune o setor com rigor excessivo. Faz parte do humor, da sátira incomodar, causar desconforto, perturbar, inclusive minorias ou maiorias, tanto faz.

Mesmo considerando que as piadas do humorista são preconceituosas ou de mau gosto, o direito penal não deveria atingilo.

O Direito Penal deve ser a última ratio, utilizado apenas quando não houver outro meio de proteção eficaz. A aplicação de pena de prisão por piadas, ainda que ofensivas, levanta preocupações quanto à proporcionalidade da resposta estatal. O Estado não deveria cuidar desse tema como de outros que dizem respeito a sensibilidade e a moral social.

Vivemos tempos realmente bicudos como têm dito o Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio de Melo. A aplicação severa da lei penal a manifestações humorísticas contrasta com a leniência observada em casos complexos de corrupção que envolvem prejuízos bilionários ao erário. Enquanto piadas geram penas de reclusão, escândalos como os do Mensalão, Petrolão, e fraudes no INSS ou nos Correios frequentemente terminam em prescrições, absolvições ou nulidades processuais — mesmo com provas contundentes e confissões de réus.

Essa assimetria evidencia a urgência de repensarmos as prioridades do sistema de justiça criminal brasileiro.

*Marcelo Figueiredo é advogado., consultor Jurídico em São Paulo e professor associado de Direito Constitucional da PUC/SP.


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