semeadura.com
O tempo essa unidade física-transcendental que nos toma e
nos consomem em uma velocidade que varia subjetivamente quando medido por
nossos anseios nem sempre podendo ser calculado pela relação distância versus
velocidade para o cumprimento do cronograma seja ele qual for... Ás vezes,
simplesmente nos escapa, mas ainda assim se quer cavalgá-lo, domá-lo, na
verdade se trata da eterna busca pelo autodomínio. Assim como o ato de escrever
e criar, se manusear pouco ou se parar, a inspiração se ressente, enferruja, a
magia da criação se sente machucada, a palavra dissertada perde o foco e a vontade
de compartilhar se fadiga. É preciso força e disciplina para a escrita.
Reflito rapidamente sobre o tempo, ele tão inerente no
dia-a-dia da humanidade e tão intrínseco no devir. Para, além disso, o tempo
faz parte do meu ofício como um filme a ser decifrado. Nele o ser humano é o
protagonista a ser analisado num espaço determinado por alguma certa duração. O
tempo da história, afinal como diria o saudoso mestre Marc Bloch, “é o próprio
plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade”.
Um tempo verdadeiro de natureza contínua e, também, de perpetua mudança. E da
antítese desses atributos provém os grandes problemas da pesquisa histórica,
finaliza o sábio.
E sob o faro desse viés do tempo histórico que desembarquei
na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 23 de junho e 9 de julho,como todo
bom marujo alicerçado pelos nortes dos grandes capitães da história a fim de
navegar nos mares documentais dos arquivos históricos da antiga capital do
país, naveguei nos principais e mantendo o foco nas mapotecas desses acervos
buscando pescar, registrar os mapas coloniais da Capitania do Pará,
especialmente aqueles que representasse os indígenas e africanos em suas
cartografias, tendo em vista não ter encontrado esse tipo de documentação desse
período nos arquivos locais.
Destes acervos vale fazer um destaque a biblioteca nacional,
a grande mãe deste vasto mar de fontes do período colonial à atualidade,
segundo a UNESCO,a maior biblioteca da América latina, nela se encontra para
mais de 10 milhões de itens, haja fôlego! Obviamente, muitas pesquisas já foram
feitas a partir do manuseio dessas fontes, contudo os pesquisadores de regiões
mais distantes, a citar Norte e Nordeste, ainda pouco consulta esse acervo, a
documentação referente à Amazônia colonial e imperial no que se refere às
populações, o mundo do trabalho, seja a mão-de-obra livre, branca ou escrava
africana ou ainda a força de trabalho indígena há uma vasta documentação pouco
explorada pelos pesquisadores amazônidas da contemporaneidade – salvo raras
exceções a citar os trabalhos da “velha guarda” da Clio amazônica, as pesquisas
da historiadora Patrícia Sampaio, a demografia história do Xingu da
norte-americana Arlene Kelly ou os estudos dos sistemas agrários de Maria
Nazaré Angelo-Menezes, dentre outros – que poderiam lhes ajudar a suscitar
novas problemáticas de pesquisa ou auxiliá-los nas investigações de suas
pesquisas atuais sobre essas temáticas e esses recortes históricos.
Certamente está presencialmente nesses arquivos há custos –
deslocamento versus alimentação versus hospedagem, dentre outros –, entretanto
é um investimento que vale a pena e se tens bolsa de pesquisa programe-se é um
mergulho transformador tanto para o pesquisador quanto para sua pesquisa,
apesar de parte da documentação está disponível online, mas a maioria desses
documentos está lá nas estantes, nos rolos dos microfilmes, esperando pelo seu
olhar e faro.
Outro momento dessa viagem no tempo histórico foi à
experiência etnológica e “espiritual”participando do curso de ervas medicinais
ministrado pelo Pajé Tobi Itaúna em Cachoeira de Macacu no RJ, organizado pela
produtora cultural Jequitibá produções. A convite do casal de ativistas
Wellington Lira e Aline Germano,diretores da produtora, obtive uma bolsa para
fazer o curso. Das representações indígenas do passado colonial que tanto busco
nos mapas, dei um pulo para o presente e fui beber nas fontes de uma cultura
que atravessou os tempos, a pajelança, em especial, a cura por meio das ervas
medicinais.
O pajé Tobi Itaúna oriundo da etnia tupi guarani, sua
povoação natural advém do estado do Amazonas, passou a residir noRio de Janeiro
ainda criança quando se separou de sua família e depois retornou a “aldeia”,
fazendo desde então intercâmbio entre a cidade e o povoado, entre o “branco” e
o índio.
O ervanário do pajé Tobi foi catalogado pelo projeto “Museu
de arte e Origens” da FAPERJ, coordenado pela profa. Dra. Dinah Guimarães, no
final do século XX com objetivo de registrar, preservar e expressar os modos de
vida e os costumes dos índios Guarani que habitam três aldeias – Bracuí, Paraty
Myrin e Araponga – do Estado do Rio de Janeiro, tanto dos “aldeados” (ou
vivendo em terras protegidas pela FUNAI-Fundação Nacional do Índio) quanto
daqueles agentes indígenas urbanos (ou já adaptados à vida nas cidades do
país), levando em consideração a contraposição desses dois agentes.
Interessante notar que mesmo o Pajé Tobi transitando entre
os dois âmbitos destes agentes, o curso de erva medicinal manteve em sua
realização a ritualística nos moldes da tradição da cultura tupi-guarani desde
o começo com sua abertura, defumando os participantes, “sacralizando” o local
aonde as ervas ficaram guardadas para o estudo, o rito diante das fogueiras
iluminadas pelo brilho do luar, o dia de estudo das ervas no combate das
enfermidades e por fim o preparo dos remédios naturais (garrafadas, chás e
xaropes de ervas). Nesse endereço da jequitibá produções seguem os registros
fotográficos desses momentos do curso
www.facebook.com/media/set/?set=a.419971434865459.1073741865.337881633074440&type=3
No primeiro dia do curso fomos presenteados com um lindo
luar, foram feita duas fogueiras uma para purificar, limpar a corrente (os
participantes) e outra para desmanche de energias negativas, demandas, “quebrar
força inimiga”, segundo palavras do Pajé, além de um canto de louvor na língua
tupi em reverência ao deus Nhanderú, o deus supremo dos tupis-guaranis. Tudo
com muita alegria e uma conexão incrível com a natureza, típica da cultura
guarani.
O segundo dia foi de
ensinamentos do Pajé a partir do seu caderno de estudo no qual foi
sistematizado as principais ervas pelos pesquisadores do projeto “Museu de arte
e origens” a partir do processo de preparo dos remédios para cada enfermidade.
Nesse primeiro módulo foram priorizadas dez receitas para o combate dos males
de gripe e resfriado, dor de garganta, males do estômago, inflamação no útero,
problemas reumáticos, problemas renais, problemas do fígado, males do coração,
fraqueza sexual e diabete. Contudo, segundo Pajé Tobi, no seu ervanário há
ervas que ajudam na cura de aproximadamente seiscentos e oitenta males. No
curso o pajé pode trazer apenas uma pequena amostra dessas ervas para a realização
da atividade em função da grandiosidade do seu ervanário.
O terceiro dia foi de finalização dos estudos das ervas
catalogadas no caderno, a entrada na mata para o ensinamento de identificação
das ervas, o plantio e os nortes para a colheita, tudo nos moldes ritualístico
da tradição guarani. Além de observações extras do pajé que complementava com
alguma planta ou orientação importante sobre cada receita.
Um dos momentos mais interessante, dentre tantos desse
aprendizado, foi o exercício de concentração ao se fazer na hora da consulta à
pessoa enferma a fim de se conectar com seus guias, espíritos da natureza para
que lhe ajude a identificar melhor as doenças e as ervas necessárias para a
cura, sem a necessidade de entrar em transe, experiência incrível até para
aqueles que não têm fé.
Nesse aprendizado com Pajé Tobi Itaúna podemos também notar
o quão a pajelança indígena contemporânea dos guaranis da Mata Atlântica se
aproxima da pajelança cabocla da Amazônia, das erveiras do Ver-o-peso em Belém
do Pará, apesar de que essa seja bem mais sincrética, na medida em que dialoga
com alguns ritos cristãos, no momento que se orienta a fazer orações nos banhos
e rezas para os enfermos, afinal foram mais de 500 anos catequização,
assimilação acabou por ser inevitável.
Chegamos ao final da viagem, lembro nesse instante dos meus
capitães da história que me nortearam todo o percurso, dos annales aos bons
rebeldes da historia vista de baixo, não se esquecendo do olhar minucioso de
“mitos, emblemas, sinais” do grande Ginzburg, da minha nobre orientadora do
doutorado, profa. Rosa Acevedo, a capitão-mor de muitas esquadras marítimas dos
rios de águas doce da história amazônica, a inspiração em que me passa em
seguir meu ofício de fazer história, de forma interdisciplinar, retorno a
superfície, do tempo histórico das representações indígenas nos espaços em
produção da Amazônia colonial ao espaço das representações indígenas por meio
das práticas de curas das ervas medicinais na minha amada Santa Maria de Belém
do Grão-Pará.
Cheguei e vamos às escribas, da cartografia ao sagrado
selvagem das sociedades tradicionais e o sagrado selvagem da civilização
ocidental, quem domestifica quem? Nem tanto ao céu, nem tanto a terra, já nos
deixou a dica um dos grandes capitães dos mares da antropologia Roger Bastide.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Este blog só aceita comentários ou críticas que não ofendam a dignidade das pessoas.