terça-feira, 29 de dezembro de 2015

UMBANDAS CARIOCAS, “JUDEUS UMBANDISTAS” E OUTRAS IDIOSSICRASIAS

Quando vejo os bons textos da Alanna nem penso duas vezes: vou logo ler... E este vem com um título de chamar atenção... E ela foi ao Rio e visitou três templos de umbandas... Em um dos templos, ela vê linhas da umbanda com as práticas e filosofia do Santo Daime, fundada pelo Mestre Irineu, no Acre, na década de 1930. E eu lembro aqui que Mestre Irineu nasceu no Maranhão na cidade de São Vicente de Ferrer, vizinha de São João Batista...
Mas vamos ao texto da Alanna e vejam a beleza de conhecimento:

UMBANDAS CARIOCAS, “JUDEUS UMBANDISTAS” E OUTRAS IDIOSSICRASIAS



POR Alanna Souto









No final de novembro do corrente ano estive no Rio de Janeiro participando das atividades de pesquisa de um projeto sobre umbanda vinculado a organização judaica http://ticunbrasil.com/umbanda/ , apesar de ser um tema já bem explorado no campo da antropologia, sobretudo, no Brasil e também pelos brasilianistas das religiões afro-brasileiras, a citar  os mais destacados Roger Bastide, Pierre Verger e a Diana Brown, essa se voltou especificamente para os estudos da formação da umbanda no contexto urbano do Rio de Janeiro, até hoje sua tese ainda não foi traduzida para o português, mesmo sendo bem referenciada pelos estudiosos da temática...ainda paira muitas lacunas referente a compreensão mais consistente dessa religião tão universalista e ao mesmo tempo idiossincrática na composição de suas raízes brasileiras.

Para alguns estudiosos brasileiros o tema pode já aparecer exaustivo, a umbanda já foi abordada em diferentes aspectos por inúmeras obras, teses e dissertações tanto no âmbito acadêmico quanto entre os autores umbandistas, contudo a umbanda ainda está longe de ser decifrada , especialmente, do ponto de vista dos códigos simbólicos universais que agregam a sua tríade arquetípica, a sua divina trindade “pretos velhos, caboclos e erês”, de que forma essas linhas são exploradas e de que forma se relaciona com essa tríade?

E de que forma alguns desses códigos podem ser expostos num mapa decodificado de suas simbologias na arvore da vida cabalística dentro dos horizontes da umbanda? E numa linguagem acessível e libertadora às massas populares? Afinal grande parte dos terreiros de umbanda do Brasil estão localizados nas periferias das cidades ou mesmo nas sendas mais peculiares da umbanda nos sertões nordestinos e amazônicos. Sem contar que seus arquétipos principais da tríade estarem assentados num elo representativo fortíssimo afro-indígena.

No Rio tive oportunidade de visitar três templos de umbandas: a tenda Caravana do Caminho na capital do RJ, o templo do Vale do Sol e da lua em Itaocaia Valley, Itaipuaçu e o templo Flor da montanha (Comunidade da Baixinha) em Lumiar, Nova Friburgo, os dois primeiros numa linha da umbanda mais clássica assentados nos princípios básicos do anunciador da umbanda, o mestre Zélio Fernandino de Moraes, ou seja, tendas/terreiros que vivenciam essa religião na perspectiva da caridade, do culto a natureza e todos os seres vivos (sem sacrifício de nenhum tipo de animal) e o templo Flor da montanha também nessa perspectiva mais tradicional da umbanda, contudo articulando as linhas da umbanda com as práticas e filosofia do Santo Daime, sendo portanto um dos templos pioneiros dessa junção Umbandaime, estando integrado, inclusive, à linhagem das Igrejas do Santo Daime, fundada pelo Mestre Irineu, no Acre, na década de 1930 e segue o calendário com os hinários festivos das igrejas. Mensalmente realiza também as giras de caboclos e pretos velhos.

Na tenda Caravana do Caminho no dia em que visitamos estava sendo realizado trabalhos na linha dos erês ligado ao orixá Ibeiji, emanação divina da criação relacionado ao princípio, o único Orixá permanentemente duplo, aproxima-se de Exu pelo seu comportamento arquetípico independente. É formado por duas entidades distintas e sua função básica é indicar a contradição, os opostos que coexistem. Num plano mais terreno, por ser criança é associado a tudo o que se inicia: a nascente de um rio, o germinar das plantas, o nascimento de um ser humano...

Interessante notar que apesar da popularidade do Orixá Ibeiji dentro do panteão afro-brasileiro, sincretizado com São Cosme e Damião, percebe-se na umbanda uma certa incompreensão por parte dos neófitos em explicar sobre quem seriam ou o que são as entidades erês na umbanda. Creio por ser uma das linhas mais enigmática dessa religião, as manifestações dos erês nas tendas / terreiros ainda deixam muitos intrigados, afinal crianças por mais inteligente que sejam, mesmo nos seus 7, 9, 10 anos de idade não estão aptas em orientar adultos em alto graus de desequilíbrios e obsessões emocionais/ espirituais. Nesse sentido, Rubem Saraceni nos ensina a entender por meio de sua obra Os arquétipos da umbanda que esse arquétipo não veio da materialidade e sim foi fornecido pelas crianças encantadas da natureza, diferente de como muitos pensam os erês arquetípicos não advém de espíritos de crianças desencarnadas, apesar desses espíritos de crianças desencarnadas, alguns deles depois de serem direcionados por esses encantados da natureza ascendem como mestres e se manifestam nos terreiros como erês para auxiliar e orientar os adultos e mesmo crianças que buscam suas orientações e benções.

Na Caravana do caminho fui atendida pelo erê “aparelhado” em um médium adulto que se identificou como Zequinha, fiz algumas perguntas a respeito de suas origens, ele argumentou que não podia falar muito sobre suas origens, pois o fundamento se aprende na prática, contudo adiantou que já teve muitas vidas em diversas etnias e culturas, mas que sua última encarnação morreu ainda na infância e foi direcionado por esses encantados da natureza em suas fases iniciais, conforme já havia dito Saraceni. Podemos dizer assim que seriam uma espécie de anjos querubins da Umbanda, fazendo uma analogia com os anjos cabalísticos, sem igualá-los, obviamente por serem perspectivas culturais e representações diferenciadas do sagrado e divino, apesar das similaridades. Sem dúvida pela forma que esses espíritos de erês direcionam o trabalho dentro de um templo mesmo em sua forma infantil, nas brincadeiras, com seus doces, pipocas e pirulitos eles conseguem ter um alcance e provocar um estado de alegria até mesmo nos consulentes mais depressivos que acabam absorvendo aquela boa vibração.

O arquétipo “Criança” baseia-se assim na inocência, na franqueza e na ingenuidade dos seres encantados ainda na primeira idade: a infantil. É uma representação forte e poderosa, pois por trás dela estão as mães Orixás, as Yabás, dando-lhe sustento e equilíbrio, assim como também os pais Orixás, guardando e zelando pela integridade desses erês nesse estágio da evolução. Os erês diferente dos caboclos em que seu arquétipo representa os índios brasileiros, os mestiços, o sertanejo e também diferenciando-se dos pretos velhos que fundamenta-se no negro ancião, rezador e curandeiro, os erês vão representar todas as “raças”, não vindo em roupagens mais definitivas, digamos assim, como os outros dois arquétipos da umbanda sagrada.

Da linha da ibeijada adentramos depois de alguns dias nas sendas dos guardiões de Lei, masculinos e femininos no Templo do Vale do sol e da lua que também foi uma experiência rica do ponto de vista da diversidade das linhas baseada em fontes diferenciadas reunidas na composição ritualísticas desse templo mesmo naquela dia de trabalho de exu e pomba-gira.  Sem dúvida o entendimento de Exus e das bombogiras na umbanda quando compreendida na prática, para além do bem e do mal que se fundamenta seus mistérios, desmitifica o olhar preconceituoso até mesmo das mentes mais esclarecidas que muitas vezes contaminadas por sua formação judaica ou cristã tentam associar com espíritos demoníacos e obsessores.  O que é uma tremenda tolice, afinal ao estudar e vivenciar essa chamada esquerda da umbanda verifica-se real finalidade, o bem, a libertação e a defesa do livre arbítrio.

Exu na umbanda são espíritos que já tiveram vida encarnada, muitas vezes transgressores dessas vidas passadas e que foram direcionados para servirem a espiritualidade como uma espécie de “polícia” divina, protegendo a vida terrena, abrindo as portas, equilibrando as energias emocionais, harmonizando a sexualidade, detectando e curando doenças advindas de desequilíbrios/contatos sexuais, em especial, as exus femininas. Logo, exu é vitalidade. Vida.  As entidades exus e o Orixá Exu na configuração hierárquica da umbanda se posiciona no trono divino vital do Uno, do criador.

Nesse templo conversei com uma bombo-gira já bem conhecida das sendas de umbanda que se identificou como Maria Padilha numa linguagem escrachada, direta, ouvi seus dizeres e observei a prática de suas palavras, o senso de ética e virtuosismo mesmo sendo as entidades mais próximas da terra e dos seres humanos.  Não à toa é que dizem que exu ampara os virtuosos e esgota os viciados.

É claro que sempre terão pessoas para utilizarem o nome desses entidades em seus mercados da fé para ganhar em cima dos desesperados, assim como o traficante para o viciado passando por cima do trono da lei e se conectando com qualquer outra coisa menos com quem diz está “incorporado”, o mal funciona, assim como bem pela força da intensão e do pensamento até a física quântica já deu sua prova do poder da mente, as energias que se diferem e também a honestidade do médium faz toda diferença.  Deve ser por isso que os honestos da umbanda dizem “umbanda é coisa séria para gente séria” ou ainda “quem for podre que se quebre”, assim por diante.

Do aprendizado com os exus partimos para cidade lumiar e lá visitar um templo já conhecido pelos investigadores mais astutos desta espiritualidade, chamado Flor da Montada, a comunidade da mãe Baixinha que desencarnou já faz 1 ano, pioneira na implementação de uma comunidade que articulou os fundamentos da Umbanda com o Santo Daime, formando assim o Umbandaime.

O templo fica nos altos da cidade de Lumiar, o que mais me chamou atenção nesse templo foi o aspecto xamânico muito forte no seu direcionamento, não à toa, o guia da saudosa mãe Baixinha é o mestre Tupinambá que segundo muitos relatos reconhece o uso da Ayahuasca como erva espiritual e abençoou o uso da erva nas ritualísticas de umbanda na comunidade. Assim como os outros dois templos visitados, apesar de cada qual com suas idiossincrasias, seguem a perspectiva da “umbanda como a manifestação do espírito para a prática da caridade”. Um templo vigoroso que vive o silêncio das matas longe da contaminação do olho do furacão, a mídia que muitas vezes mais deturpa do que fortalece essas comunidades alternativas.

Neste momento da jornada me atentei também para outros sujeitos viventes da equipe de pesquisa que adentraram com muito entusiasmo nessa floresta sagrada do Umbandaime, não se trata de indivíduos comum em suas raízes culturais, pois dois deles são judeus, a começar pelo coordenador do projeto.  E como a umbanda e suas umbandas em sua ótica caritativa e solidária libertadora dos grilhões do egocentrismo, da vaidade a partir de suas curas das enfermidades, do orientar, do abraço amigo de um preto velho, da força de uma palavra de um caboclo/cabocla por meio de toda sua ritualística, dos atabaques e toques de tambor conseguiram envolver esses judeus de forma natural, harmoniosa e alegre em suas vivências, fazendo-os sentir em suas almas o poder advindo do Criador, Olurum, Tupã ou outra nomenclatura que seja para aquele que tem mil nomes desde a explosão do big bang, abertos a compreender essa cultura por meio dos seus símbolos e seus resultados positivos na vida daqueles que a procuram.

Com exceção do coordenador do projeto que é gringo, russo, os judeus os quais ouvir, seja transcrevendo os áudios das entrevistas feitas à duas judias que se consideram umbandistas, mas sem renegar suas raízes religiosas judaicas, uma delas , inclusive,  atua como médium de um templo de umbanda no RJ, seja o judeu professor de filosofia e de língua inglesa que nos acompanhou nos templos de umbanda nessas cidades do estado do Rio de Janeiro, todos esses judeus são brasileiros, sendo que esse último não se considera umbandista, todavia todos esses judeus brasileiros conseguiram se ver dentro da lógica do terreiro de umbanda por mais ortodoxa que seja os ditames de suas formações na religião judaica. Nesse caso as suas identidades culturais brasileiras representadas na configuração dos arquétipos da umbanda tão arraigados nos povos afro-indígenas acabaria por aproximar esses judeus brasileiros de seus ancestrais mais próximos? Já que a umbanda sendo uma religião genuinamente brasileira será o espelho de toda essa brava gente do país que durante muitos séculos fora silenciada.

Fenômeno, na verdade, observado em indivíduos de outras religiões que também se encantam com a umbanda ao visitarem seus templos. O que é mais comum são pessoas do catolicismo frequentarem esses terreiros/ tendas, sem necessariamente abandonar o catolicismo, diferente das esferas mais ortodoxas do judaísmo ou dos neopentecostais fundamentalistas que muitas vezes até perseguem e agridem esses templos umbandistas. Por isso de alguma forma me impressionou a presença, a participação harmônica tão conectada desses judeus brasileiros com a espiritualidade umbandista.

A umbanda a cada “aldeia” em que visito de mente e coração aberto, fazendo minhas observações escritas ou mentais se revela cada vez mais muito além do que propõe uma religião, geralmente, demarcada pelos limites de suas verdades cristalizadas.

Nas aldeias da umbanda todo ser humano que chega em sua seara é índio, morubixaba, caboclo, boiadeiro, preto velho, malandro(a), marinheiros, ciganos, crianças e todos seus arquétipos regionais que se enlaçam num universalismo com outros matizes culturais e espirituais que tem encantado o mundo, independente de crença, etnia, opção sexual e classe social....a Umbanda rompe com esses padrões institucionalizados e propõe uma forma anárquica de viver espiritualidade sem proselitismo e se posicionando no decorrer de sua evolução existencial como uma espécie de escola espiritual , tendo como seu principais pilares a cura e a transformação do ser.

Cada aldeia da umbanda sagrada, uma escola, um hospital, um alento de justiça, de liberdade e um reencontro com a ancestralidade, uma alternativa de outro mundo. O silêncio talvez seja o seu maior grito tão incômodo quanto o barulho de sua cadeira de balanço ou de seus doces e travessuras.

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