Mas vamos ao texto da Alanna e vejam a beleza de conhecimento:
UMBANDAS CARIOCAS, “JUDEUS UMBANDISTAS” E OUTRAS
IDIOSSICRASIAS
POR Alanna Souto
No final de novembro do corrente ano estive no Rio de
Janeiro participando das atividades de pesquisa de um projeto sobre umbanda
vinculado a organização judaica http://ticunbrasil.com/umbanda/ , apesar de ser
um tema já bem explorado no campo da antropologia, sobretudo, no Brasil e
também pelos brasilianistas das religiões afro-brasileiras, a citar os mais destacados Roger Bastide, Pierre
Verger e a Diana Brown, essa se voltou especificamente para os estudos da
formação da umbanda no contexto urbano do Rio de Janeiro, até hoje sua tese
ainda não foi traduzida para o português, mesmo sendo bem referenciada pelos
estudiosos da temática...ainda paira muitas lacunas referente a compreensão
mais consistente dessa religião tão universalista e ao mesmo tempo
idiossincrática na composição de suas raízes brasileiras.
Para alguns estudiosos brasileiros o tema pode já aparecer
exaustivo, a umbanda já foi abordada em diferentes aspectos por inúmeras obras,
teses e dissertações tanto no âmbito acadêmico quanto entre os autores
umbandistas, contudo a umbanda ainda está longe de ser decifrada ,
especialmente, do ponto de vista dos códigos simbólicos universais que agregam
a sua tríade arquetípica, a sua divina trindade “pretos velhos, caboclos e
erês”, de que forma essas linhas são exploradas e de que forma se relaciona com
essa tríade?
E de que forma alguns desses códigos podem ser expostos num
mapa decodificado de suas simbologias na arvore da vida cabalística dentro dos
horizontes da umbanda? E numa linguagem acessível e libertadora às massas
populares? Afinal grande parte dos terreiros de umbanda do Brasil estão
localizados nas periferias das cidades ou mesmo nas sendas mais peculiares da
umbanda nos sertões nordestinos e amazônicos. Sem contar que seus arquétipos
principais da tríade estarem assentados num elo representativo fortíssimo
afro-indígena.
No Rio tive oportunidade de visitar três templos de umbandas:
a tenda Caravana do Caminho na capital do RJ, o templo do Vale do Sol e da lua
em Itaocaia Valley, Itaipuaçu e o templo Flor da montanha (Comunidade da
Baixinha) em Lumiar, Nova Friburgo, os dois primeiros numa linha da umbanda
mais clássica assentados nos princípios básicos do anunciador da umbanda, o
mestre Zélio Fernandino de Moraes, ou seja, tendas/terreiros que vivenciam essa
religião na perspectiva da caridade, do culto a natureza e todos os seres vivos
(sem sacrifício de nenhum tipo de animal) e o templo Flor da montanha também
nessa perspectiva mais tradicional da umbanda, contudo articulando as linhas da
umbanda com as práticas e filosofia do Santo Daime, sendo portanto um dos
templos pioneiros dessa junção Umbandaime, estando integrado, inclusive, à
linhagem das Igrejas do Santo Daime, fundada pelo Mestre Irineu, no Acre, na
década de 1930 e segue o calendário com os hinários festivos das igrejas.
Mensalmente realiza também as giras de caboclos e pretos velhos.
Na tenda Caravana do Caminho no dia em que visitamos estava
sendo realizado trabalhos na linha dos erês ligado ao orixá Ibeiji, emanação
divina da criação relacionado ao princípio, o único Orixá permanentemente
duplo, aproxima-se de Exu pelo seu comportamento arquetípico independente. É formado
por duas entidades distintas e sua função básica é indicar a contradição, os
opostos que coexistem. Num plano mais terreno, por ser criança é associado a
tudo o que se inicia: a nascente de um rio, o germinar das plantas, o
nascimento de um ser humano...
Interessante notar que apesar da popularidade do Orixá
Ibeiji dentro do panteão afro-brasileiro, sincretizado com São Cosme e Damião,
percebe-se na umbanda uma certa incompreensão por parte dos neófitos em
explicar sobre quem seriam ou o que são as entidades erês na umbanda. Creio por
ser uma das linhas mais enigmática dessa religião, as manifestações dos erês
nas tendas / terreiros ainda deixam muitos intrigados, afinal crianças por mais
inteligente que sejam, mesmo nos seus 7, 9, 10 anos de idade não estão aptas em
orientar adultos em alto graus de desequilíbrios e obsessões emocionais/
espirituais. Nesse sentido, Rubem Saraceni nos ensina a entender por meio de
sua obra Os arquétipos da umbanda que esse arquétipo não veio da materialidade
e sim foi fornecido pelas crianças encantadas da natureza, diferente de como
muitos pensam os erês arquetípicos não advém de espíritos de crianças
desencarnadas, apesar desses espíritos de crianças desencarnadas, alguns deles
depois de serem direcionados por esses encantados da natureza ascendem como
mestres e se manifestam nos terreiros como erês para auxiliar e orientar os
adultos e mesmo crianças que buscam suas orientações e benções.
Na Caravana do caminho fui atendida pelo erê “aparelhado” em
um médium adulto que se identificou como Zequinha, fiz algumas perguntas a
respeito de suas origens, ele argumentou que não podia falar muito sobre suas
origens, pois o fundamento se aprende na prática, contudo adiantou que já teve
muitas vidas em diversas etnias e culturas, mas que sua última encarnação
morreu ainda na infância e foi direcionado por esses encantados da natureza em
suas fases iniciais, conforme já havia dito Saraceni. Podemos dizer assim que
seriam uma espécie de anjos querubins da Umbanda, fazendo uma analogia com os
anjos cabalísticos, sem igualá-los, obviamente por serem perspectivas culturais
e representações diferenciadas do sagrado e divino, apesar das similaridades.
Sem dúvida pela forma que esses espíritos de erês direcionam o trabalho dentro
de um templo mesmo em sua forma infantil, nas brincadeiras, com seus doces,
pipocas e pirulitos eles conseguem ter um alcance e provocar um estado de
alegria até mesmo nos consulentes mais depressivos que acabam absorvendo aquela
boa vibração.
O arquétipo “Criança” baseia-se assim na inocência, na
franqueza e na ingenuidade dos seres encantados ainda na primeira idade: a
infantil. É uma representação forte e poderosa, pois por trás dela estão as
mães Orixás, as Yabás, dando-lhe sustento e equilíbrio, assim como também os
pais Orixás, guardando e zelando pela integridade desses erês nesse estágio da
evolução. Os erês diferente dos caboclos em que seu arquétipo representa os
índios brasileiros, os mestiços, o sertanejo e também diferenciando-se dos
pretos velhos que fundamenta-se no negro ancião, rezador e curandeiro, os erês
vão representar todas as “raças”, não vindo em roupagens mais definitivas,
digamos assim, como os outros dois arquétipos da umbanda sagrada.
Da linha da ibeijada adentramos depois de alguns dias nas
sendas dos guardiões de Lei, masculinos e femininos no Templo do Vale do sol e
da lua que também foi uma experiência rica do ponto de vista da diversidade das
linhas baseada em fontes diferenciadas reunidas na composição ritualísticas
desse templo mesmo naquela dia de trabalho de exu e pomba-gira. Sem dúvida o entendimento de Exus e das
bombogiras na umbanda quando compreendida na prática, para além do bem e do mal
que se fundamenta seus mistérios, desmitifica o olhar preconceituoso até mesmo
das mentes mais esclarecidas que muitas vezes contaminadas por sua formação
judaica ou cristã tentam associar com espíritos demoníacos e obsessores. O que é uma tremenda tolice, afinal ao
estudar e vivenciar essa chamada esquerda da umbanda verifica-se real
finalidade, o bem, a libertação e a defesa do livre arbítrio.
Exu na umbanda são espíritos que já tiveram vida encarnada,
muitas vezes transgressores dessas vidas passadas e que foram direcionados para
servirem a espiritualidade como uma espécie de “polícia” divina, protegendo a
vida terrena, abrindo as portas, equilibrando as energias emocionais,
harmonizando a sexualidade, detectando e curando doenças advindas de
desequilíbrios/contatos sexuais, em especial, as exus femininas. Logo, exu é
vitalidade. Vida. As entidades exus e o
Orixá Exu na configuração hierárquica da umbanda se posiciona no trono divino
vital do Uno, do criador.
Nesse templo conversei com uma bombo-gira já bem conhecida
das sendas de umbanda que se identificou como Maria Padilha numa linguagem
escrachada, direta, ouvi seus dizeres e observei a prática de suas palavras, o
senso de ética e virtuosismo mesmo sendo as entidades mais próximas da terra e
dos seres humanos. Não à toa é que dizem
que exu ampara os virtuosos e esgota os viciados.
É claro que sempre terão pessoas para utilizarem o nome
desses entidades em seus mercados da fé para ganhar em cima dos desesperados,
assim como o traficante para o viciado passando por cima do trono da lei e se
conectando com qualquer outra coisa menos com quem diz está “incorporado”, o
mal funciona, assim como bem pela força da intensão e do pensamento até a
física quântica já deu sua prova do poder da mente, as energias que se diferem
e também a honestidade do médium faz toda diferença. Deve ser por isso que os honestos da umbanda
dizem “umbanda é coisa séria para gente séria” ou ainda “quem for podre que se
quebre”, assim por diante.
Do aprendizado com os exus partimos para cidade lumiar e lá
visitar um templo já conhecido pelos investigadores mais astutos desta
espiritualidade, chamado Flor da Montada, a comunidade da mãe Baixinha que
desencarnou já faz 1 ano, pioneira na implementação de uma comunidade que
articulou os fundamentos da Umbanda com o Santo Daime, formando assim o
Umbandaime.
O templo fica nos altos da cidade de Lumiar, o que mais me
chamou atenção nesse templo foi o aspecto xamânico muito forte no seu
direcionamento, não à toa, o guia da saudosa mãe Baixinha é o mestre Tupinambá
que segundo muitos relatos reconhece o uso da Ayahuasca como erva espiritual e
abençoou o uso da erva nas ritualísticas de umbanda na comunidade. Assim como
os outros dois templos visitados, apesar de cada qual com suas idiossincrasias,
seguem a perspectiva da “umbanda como a manifestação do espírito para a prática
da caridade”. Um templo vigoroso que vive o silêncio das matas longe da
contaminação do olho do furacão, a mídia que muitas vezes mais deturpa do que
fortalece essas comunidades alternativas.
Neste momento da jornada me atentei também para outros
sujeitos viventes da equipe de pesquisa que adentraram com muito entusiasmo
nessa floresta sagrada do Umbandaime, não se trata de indivíduos comum em suas
raízes culturais, pois dois deles são judeus, a começar pelo coordenador do
projeto. E como a umbanda e suas
umbandas em sua ótica caritativa e solidária libertadora dos grilhões do
egocentrismo, da vaidade a partir de suas curas das enfermidades, do orientar,
do abraço amigo de um preto velho, da força de uma palavra de um
caboclo/cabocla por meio de toda sua ritualística, dos atabaques e toques de
tambor conseguiram envolver esses judeus de forma natural, harmoniosa e alegre
em suas vivências, fazendo-os sentir em suas almas o poder advindo do Criador,
Olurum, Tupã ou outra nomenclatura que seja para aquele que tem mil nomes desde
a explosão do big bang, abertos a compreender essa cultura por meio dos seus
símbolos e seus resultados positivos na vida daqueles que a procuram.
Com exceção do coordenador do projeto que é gringo, russo,
os judeus os quais ouvir, seja transcrevendo os áudios das entrevistas feitas à
duas judias que se consideram umbandistas, mas sem renegar suas raízes
religiosas judaicas, uma delas , inclusive,
atua como médium de um templo de umbanda no RJ, seja o judeu professor
de filosofia e de língua inglesa que nos acompanhou nos templos de umbanda
nessas cidades do estado do Rio de Janeiro, todos esses judeus são brasileiros,
sendo que esse último não se considera umbandista, todavia todos esses judeus
brasileiros conseguiram se ver dentro da lógica do terreiro de umbanda por mais
ortodoxa que seja os ditames de suas formações na religião judaica. Nesse caso
as suas identidades culturais brasileiras representadas na configuração dos arquétipos
da umbanda tão arraigados nos povos afro-indígenas acabaria por aproximar esses
judeus brasileiros de seus ancestrais mais próximos? Já que a umbanda sendo uma
religião genuinamente brasileira será o espelho de toda essa brava gente do
país que durante muitos séculos fora silenciada.
Fenômeno, na verdade, observado em indivíduos de outras
religiões que também se encantam com a umbanda ao visitarem seus templos. O que
é mais comum são pessoas do catolicismo frequentarem esses terreiros/ tendas,
sem necessariamente abandonar o catolicismo, diferente das esferas mais
ortodoxas do judaísmo ou dos neopentecostais fundamentalistas que muitas vezes
até perseguem e agridem esses templos umbandistas. Por isso de alguma forma me
impressionou a presença, a participação harmônica tão conectada desses judeus
brasileiros com a espiritualidade umbandista.
A umbanda a cada “aldeia” em que visito de mente e coração
aberto, fazendo minhas observações escritas ou mentais se revela cada vez mais
muito além do que propõe uma religião, geralmente, demarcada pelos limites de
suas verdades cristalizadas.
Nas aldeias da umbanda todo ser humano que chega em sua
seara é índio, morubixaba, caboclo, boiadeiro, preto velho, malandro(a),
marinheiros, ciganos, crianças e todos seus arquétipos regionais que se enlaçam
num universalismo com outros matizes culturais e espirituais que tem encantado
o mundo, independente de crença, etnia, opção sexual e classe social....a
Umbanda rompe com esses padrões institucionalizados e propõe uma forma
anárquica de viver espiritualidade sem proselitismo e se posicionando no
decorrer de sua evolução existencial como uma espécie de escola espiritual ,
tendo como seu principais pilares a cura e a transformação do ser.
Cada aldeia da umbanda sagrada, uma escola, um hospital, um
alento de justiça, de liberdade e um reencontro com a ancestralidade, uma
alternativa de outro mundo. O silêncio talvez seja o seu maior grito tão
incômodo quanto o barulho de sua cadeira de balanço ou de seus doces e travessuras.
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