Erivaldo Oliveira*
“Tudo chegou sobrevivente em um navio […]. Foi o negro
quem viu a crueldade bem de frente e ainda produziu milagre de fé no extremo
ocidente.” Assim cantou Caetano Veloso em sua canção Milagres do Povo. Aqui os
negros chegaram em navios fétidos, amontoados como bichos, deixando para trás
clãs, impérios, riquezas e sua cultura. Atordoados ao desembarcar nos porões
das embarcações, em vão procuravam com o olhar perdido a outra margem de um
“rio” chamado Atlântico. O suposto rio era o oceano sem fim, que presenciou a
mais cruel de todas as travessias.
Os negros chegaram em terras desconhecidas, com uma
língua ininteligível, mas, mesmo assim, sonhavam em refazer seus clãs, suas
tribos. Todos os desejos eram impossíveis, afinal, eram vendidos como
mercadorias nas feiras-livres, separando pais de filhos, maridos de suas
mulheres – era o laço familiar desfeito. A crueldade do Sistema Colonial da
exploração afirmava peremptoriamente que não possuíam alma, eram apenas uma máquina
da engrenagem moedora da cana-de-açúcar.
A esperança dos sobreviventes era apelar para a
generosidade de uma Igreja Cristã, mas o Cristianismo aqui instalado era da
Igreja Jesuítica – legítima herdeira da Santa Inquisição – e logo atestava sem
culpa a inexistência de alma naqueles negros de corpos nus, que atraia a avidez
sexual dos seus proprietários. Com essa atitude, a Igreja oferecia legalidade
aos terrenos perante o soberano da crueldade escravocrata.
O inferno da travessia só era comparado a dureza da vida
nas senzalas, comendo restos de comidas, isolados do mundo real que habitavam,
não participavam da riqueza que ajudavam a construir. Alguns negros
“privilegiados” eram levados para os serviços domésticos, proibidos até de
levantarem a cabeça perante o senhor da Casa Grande, gerando um futuro sem
altivez e uma autoestima arruinada. Por isso recorro ao poeta Castro Alves para
retratar tanta dor: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se
é loucura… se é verdade. Tanto Horror perante os Céus?!”. Mas o Senhor só
oferece a dor conforme pode-se aguentar, aí o negro forte e audaz entendeu que
o grande vencedor se ergue além da dor.
A igreja das trevas da Idade Média tardia no Brasil e não
permitia o paganismo. Logo os negros eram obrigados a adorar imagens que não
conheciam, de uma cultura que não entendiam os princípios. Astutos e grandes
líderes em suas tribos, eles aceitaram a imposição, mas atribuindo a cada santo
católico o corresponde de sua religião – os grandes Orixás. Assim, Santo
Antônio virou Ogum; São Jorge, Oxóssi; Senhor do Bonfim, Oxalá; Santa Bárbara,
Iansã. Dessa forma nascia o sincretismo religioso em terras brasileiras.
Diante de tanto horror e iniquidade, novamente busco
inspiração no mestre Castro Alves: “Negras Mulheres, suspendendo as tetas
negras. Magras crianças, cujas bocas pretas regam o sangue das mães […]”.
Diante de tanto sofrimento, tanta dor, o escaldante sol das savanas e as
humilhações da escravidão tornaram os negros ainda mais fortes. Seus braços roliços
e rígidos sustentaram a lavoura do “ouro doce” – nossa cana-de-açúcar – e
produziu a riqueza de um império europeu assustado com as investidas de
Bonaparte. Diante de tanta labuta ainda buscavam forças para na calada da noite
reverenciar seus orixás, mantendo viva uma tradição e toda uma cultura que,
embora subjugada, não morreu e produziu milagre de fé, numa prova evidente que
o coração é soberano e senhor não cabendo na escravidão.
Com sua força de trabalho, o Brasil exportou açúcar e
construiu os pilares de uma nação injusta, mas nessas verdes matas o
capitalismo ainda não existia em sua forma mais avançada. Logo aqui por essas
terras o trabalho não era um fator de produção, era apenas uma obrigação, sem
remuneração – mas, resignados, viviam com alegria ao sabor dos seus cantares,
danças e oferendas no altar de suas crenças.
O todo poderoso império inglês promoveu sua revolução
industrial mudando por completo a fisionomia mundial. O novo capitalismo exigia
remuneração da força de trabalho e a escravidão não se coadunava com a nova
ordem, logo foi abolida no mundo, mas no Brasil permanecia altiva e cruel. As
raízes do capitalismo industrial estavam invadindo as mais longínquas nações e
não foi diferente com nossa pátria amada, que para se adaptar às novas regras
do capitalismo tardio, realizou em um gesto simbólico toda a “bondade do
coração lusitano” representada no ato pela Princesa Isabel – que oficialmente
abolira a escravatura, deixando o povo negro sem uma indenização pelo trabalho,
onde nunca receberam salários pelos serviços prestados, sem participar dos
lucros da terra, dormindo em pocilgas, comendo restos de alimentos, enfim,
foram jogados na sarjeta. Alguns preferiram o confinamento nos quilombos
vivendo sua miséria com dignidade e autoestima.
Agora libertos dos grilhões oficiais, os negros
enfrentaram toda sorte de preconceitos, mas ainda eram tratados como objetos,
sem profissão e sem poder produzir o seu sustento. Perambulando pelas ruas,
foram julgados incompetentes para a labuta na cultura do novo “ouro” brasileiro
– o café. Para isso vieram os imigrantes italianos em situação que o novo
capitalismo aprovara, com direito a moradia, comida, dignidade no trabalho e
salários. E os negros? Colocados à margem por um Estado injusto e cruel.
A igualdade é um princípio do Direito Positivo e já
estava presente nos ideais da Revolução Francesa, mas em nossa Pindorama era
apenas um verbete. Para conquistar a sonhada igualdade, muitos ilustres
brasileiros lutaram: Castro Alves, José do Patrocínio, Teodoro Sampaio com suas
atitudes brilhantes, até mesmo Ruy Barbosa – que queimou todos os documentos da
escravidão alegando que aquilo era uma vergonha para uma nação –, nosso Zumbi
dos Palmares – líder do maior quilombo do Brasil –, todas as correntes dos movimentos
negros, os artistas, os intelectuais como Florestan Fernandes, plantando em
cada coração uma Consciência Negra. Foram anos de lutas, com algumas inglórias,
avanços nos direitos civis, mas os negros reconquistaram a altivez e a
dignidade.
Na sarjeta e sem eira nem beira, o povo negro atravessou
o século XX nos guetos, com baixa autoestima, sem acesso à cultura oficial, com
sua cultura perseguida até pela força policial, eram preteridos nos postos de
trabalho, sobrava apenas o digno trabalho de doméstica, mas pouco valorizado em
um Brasil preconceituoso, a educação de qualidade ficava distante, não se
orgulhavam de serem negros, inventaram até diversas graduações de cores para
disfarçar a exclusão: pardo, escurinho, neguinho, chocolate… Só utilizavam a
palavra negro quando era no pejorativo, era o disfarce do preconceito. Ah!
Restou o carnaval. Nessa festa pagã, durante os dias festivos, vivia-se a
famigerada democracia racial, que logo se desfazia na Quarta-feira de Cinzas da
fé cristã.
Sei que um dia a Universidade foi mais negra que a de
hoje, pois as escolas públicas tinham grande qualidade, o que facilitava o
acesso dos negros. Logo, destruíram as escolas públicas, transformando-as em
lixo educacional, o que, a partir da década de 1970, dificultou a entrada dos
negros e pobres do país nas grandes universidades, ficando-as como um
patrimônio quase exclusivo das classes abastadas que frequentaram bons colégios
desde a tenra idade e ter acesso ao ensino superior gratuito São os recursos
públicos financiando quem menos precisa.
Diriam alguns arautos do medo e do discurso fácil: as
políticas afirmativas adotadas pelo Governo como as cotas para afrodescendentes
nas universidades são preconceituosas. Não seria preconceito mais de 100 anos
de exclusão, a falta de acesso ao lazer, inexistência de escola digna, falta de
igualdade de oportunidades, 300 anos de escravidão construindo uma riqueza que
nunca foi repartida? Até nos clubes sociais era proibida a entrada de negros,
os times de futebol não os aceitavam. Não seria desigual a indenização
oferecida às famílias dos cassados pela ditadura Militar de 1964 – embora
extremamente justas – enquanto os cassados e escravizados por um Sistema do
Brasil Império sem nunca terem recebido um salário não merecem maior respeito e
um tratamento diferenciado por um Estado injusto? Sabemos que as políticas de
inclusão social e afirmativas não são eternas, mas são reparadoras.
Hoje os negros que aqui chegaram cabisbaixos dizem
alegremente e com orgulho que são negros, se orgulham da cor, dos cabelos
crespos, do nariz chato, alcançaram posições de mando, viraram reis do futebol,
da estética, da música, das ciências, do teatro, do cinema, mas faltam derrubar
os muros do Executivo. Ah! Mas já teve um Presidente da República que disse ter
um pé na cozinha. Até a Suprema Corte de Justiça (STF) se rendeu ao povo negro
– lá tem assento um ministro negro DOUTOR Joaquim Barbosa. Falta a Igreja
abolir a resistência. Precisa-se colorir ainda mais nossas universidades, as
empresas públicas e privadas, alcançar a igualdade salarial e racial. Por isso
que devemos renovar nossa consciência a cada dia.
Que a trajetória dos negros seja de vitória com altivez,
determinação, consciência e afirmação. Que a luta pelos direitos não seja
compreendida como uma guerra contra aqueles que não estão contemplados nas
cotas. Não devemos abrir focos de luta com as vozes discordantes, mas
convencê-los das atrocidades cometidas em nome de um Estado cruel, juntar todos
em uma só canção. Só assim o negro continuará a produzir ainda mais milagres de
fé no extremo ocidente – e acho que o próximo milagre já pode ser definido: que
todos entendam que só existe uma raça: A RAÇA HUMANA. O resto é fruto da
estupidez gananciosa, histórica e biológica.
*Erivaldo Oliveira é Economista e Administrador, MBA –
Executivo em Finanças e Planejamento Estratégico, Especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, Especialista em Ciência Política, Professor
Universitário e Consultor nas áreas de Finanças Públicas e Planejamento
Governamental.
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