sábado, 11 de março de 2017

Consciência Negra: dor, luta e afirmação



Erivaldo Oliveira*

“Tudo chegou sobrevivente em um navio […]. Foi o negro quem viu a crueldade bem de frente e ainda produziu milagre de fé no extremo ocidente.” Assim cantou Caetano Veloso em sua canção Milagres do Povo. Aqui os negros chegaram em navios fétidos, amontoados como bichos, deixando para trás clãs, impérios, riquezas e sua cultura. Atordoados ao desembarcar nos porões das embarcações, em vão procuravam com o olhar perdido a outra margem de um “rio” chamado Atlântico. O suposto rio era o oceano sem fim, que presenciou a mais cruel de todas as travessias.

Os negros chegaram em terras desconhecidas, com uma língua ininteligível, mas, mesmo assim, sonhavam em refazer seus clãs, suas tribos. Todos os desejos eram impossíveis, afinal, eram vendidos como mercadorias nas feiras-livres, separando pais de filhos, maridos de suas mulheres – era o laço familiar desfeito. A crueldade do Sistema Colonial da exploração afirmava peremptoriamente que não possuíam alma, eram apenas uma máquina da engrenagem moedora da cana-de-açúcar.

A esperança dos sobreviventes era apelar para a generosidade de uma Igreja Cristã, mas o Cristianismo aqui instalado era da Igreja Jesuítica – legítima herdeira da Santa Inquisição – e logo atestava sem culpa a inexistência de alma naqueles negros de corpos nus, que atraia a avidez sexual dos seus proprietários. Com essa atitude, a Igreja oferecia legalidade aos terrenos perante o soberano da crueldade escravocrata.

O inferno da travessia só era comparado a dureza da vida nas senzalas, comendo restos de comidas, isolados do mundo real que habitavam, não participavam da riqueza que ajudavam a construir. Alguns negros “privilegiados” eram levados para os serviços domésticos, proibidos até de levantarem a cabeça perante o senhor da Casa Grande, gerando um futuro sem altivez e uma autoestima arruinada. Por isso recorro ao poeta Castro Alves para retratar tanta dor: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura… se é verdade. Tanto Horror perante os Céus?!”. Mas o Senhor só oferece a dor conforme pode-se aguentar, aí o negro forte e audaz entendeu que o grande vencedor se ergue além da dor.

A igreja das trevas da Idade Média tardia no Brasil e não permitia o paganismo. Logo os negros eram obrigados a adorar imagens que não conheciam, de uma cultura que não entendiam os princípios. Astutos e grandes líderes em suas tribos, eles aceitaram a imposição, mas atribuindo a cada santo católico o corresponde de sua religião – os grandes Orixás. Assim, Santo Antônio virou Ogum; São Jorge, Oxóssi; Senhor do Bonfim, Oxalá; Santa Bárbara, Iansã. Dessa forma nascia o sincretismo religioso em terras brasileiras.

Diante de tanto horror e iniquidade, novamente busco inspiração no mestre Castro Alves: “Negras Mulheres, suspendendo as tetas negras. Magras crianças, cujas bocas pretas regam o sangue das mães […]”. Diante de tanto sofrimento, tanta dor, o escaldante sol das savanas e as humilhações da escravidão tornaram os negros ainda mais fortes. Seus braços roliços e rígidos sustentaram a lavoura do “ouro doce” – nossa cana-de-açúcar – e produziu a riqueza de um império europeu assustado com as investidas de Bonaparte. Diante de tanta labuta ainda buscavam forças para na calada da noite reverenciar seus orixás, mantendo viva uma tradição e toda uma cultura que, embora subjugada, não morreu e produziu milagre de fé, numa prova evidente que o coração é soberano e senhor não cabendo na escravidão.

Com sua força de trabalho, o Brasil exportou açúcar e construiu os pilares de uma nação injusta, mas nessas verdes matas o capitalismo ainda não existia em sua forma mais avançada. Logo aqui por essas terras o trabalho não era um fator de produção, era apenas uma obrigação, sem remuneração – mas, resignados, viviam com alegria ao sabor dos seus cantares, danças e oferendas no altar de suas crenças.

O todo poderoso império inglês promoveu sua revolução industrial mudando por completo a fisionomia mundial. O novo capitalismo exigia remuneração da força de trabalho e a escravidão não se coadunava com a nova ordem, logo foi abolida no mundo, mas no Brasil permanecia altiva e cruel. As raízes do capitalismo industrial estavam invadindo as mais longínquas nações e não foi diferente com nossa pátria amada, que para se adaptar às novas regras do capitalismo tardio, realizou em um gesto simbólico toda a “bondade do coração lusitano” representada no ato pela Princesa Isabel – que oficialmente abolira a escravatura, deixando o povo negro sem uma indenização pelo trabalho, onde nunca receberam salários pelos serviços prestados, sem participar dos lucros da terra, dormindo em pocilgas, comendo restos de alimentos, enfim, foram jogados na sarjeta. Alguns preferiram o confinamento nos quilombos vivendo sua miséria com dignidade e autoestima.

Agora libertos dos grilhões oficiais, os negros enfrentaram toda sorte de preconceitos, mas ainda eram tratados como objetos, sem profissão e sem poder produzir o seu sustento. Perambulando pelas ruas, foram julgados incompetentes para a labuta na cultura do novo “ouro” brasileiro – o café. Para isso vieram os imigrantes italianos em situação que o novo capitalismo aprovara, com direito a moradia, comida, dignidade no trabalho e salários. E os negros? Colocados à margem por um Estado injusto e cruel.

A igualdade é um princípio do Direito Positivo e já estava presente nos ideais da Revolução Francesa, mas em nossa Pindorama era apenas um verbete. Para conquistar a sonhada igualdade, muitos ilustres brasileiros lutaram: Castro Alves, José do Patrocínio, Teodoro Sampaio com suas atitudes brilhantes, até mesmo Ruy Barbosa – que queimou todos os documentos da escravidão alegando que aquilo era uma vergonha para uma nação –, nosso Zumbi dos Palmares – líder do maior quilombo do Brasil –, todas as correntes dos movimentos negros, os artistas, os intelectuais como Florestan Fernandes, plantando em cada coração uma Consciência Negra. Foram anos de lutas, com algumas inglórias, avanços nos direitos civis, mas os negros reconquistaram a altivez e a dignidade.

Na sarjeta e sem eira nem beira, o povo negro atravessou o século XX nos guetos, com baixa autoestima, sem acesso à cultura oficial, com sua cultura perseguida até pela força policial, eram preteridos nos postos de trabalho, sobrava apenas o digno trabalho de doméstica, mas pouco valorizado em um Brasil preconceituoso, a educação de qualidade ficava distante, não se orgulhavam de serem negros, inventaram até diversas graduações de cores para disfarçar a exclusão: pardo, escurinho, neguinho, chocolate… Só utilizavam a palavra negro quando era no pejorativo, era o disfarce do preconceito. Ah! Restou o carnaval. Nessa festa pagã, durante os dias festivos, vivia-se a famigerada democracia racial, que logo se desfazia na Quarta-feira de Cinzas da fé cristã.

Sei que um dia a Universidade foi mais negra que a de hoje, pois as escolas públicas tinham grande qualidade, o que facilitava o acesso dos negros. Logo, destruíram as escolas públicas, transformando-as em lixo educacional, o que, a partir da década de 1970, dificultou a entrada dos negros e pobres do país nas grandes universidades, ficando-as como um patrimônio quase exclusivo das classes abastadas que frequentaram bons colégios desde a tenra idade e ter acesso ao ensino superior gratuito São os recursos públicos financiando quem menos precisa.

Diriam alguns arautos do medo e do discurso fácil: as políticas afirmativas adotadas pelo Governo como as cotas para afrodescendentes nas universidades são preconceituosas. Não seria preconceito mais de 100 anos de exclusão, a falta de acesso ao lazer, inexistência de escola digna, falta de igualdade de oportunidades, 300 anos de escravidão construindo uma riqueza que nunca foi repartida? Até nos clubes sociais era proibida a entrada de negros, os times de futebol não os aceitavam. Não seria desigual a indenização oferecida às famílias dos cassados pela ditadura Militar de 1964 – embora extremamente justas – enquanto os cassados e escravizados por um Sistema do Brasil Império sem nunca terem recebido um salário não merecem maior respeito e um tratamento diferenciado por um Estado injusto? Sabemos que as políticas de inclusão social e afirmativas não são eternas, mas são reparadoras.

Hoje os negros que aqui chegaram cabisbaixos dizem alegremente e com orgulho que são negros, se orgulham da cor, dos cabelos crespos, do nariz chato, alcançaram posições de mando, viraram reis do futebol, da estética, da música, das ciências, do teatro, do cinema, mas faltam derrubar os muros do Executivo. Ah! Mas já teve um Presidente da República que disse ter um pé na cozinha. Até a Suprema Corte de Justiça (STF) se rendeu ao povo negro – lá tem assento um ministro negro DOUTOR Joaquim Barbosa. Falta a Igreja abolir a resistência. Precisa-se colorir ainda mais nossas universidades, as empresas públicas e privadas, alcançar a igualdade salarial e racial. Por isso que devemos renovar nossa consciência a cada dia.

Que a trajetória dos negros seja de vitória com altivez, determinação, consciência e afirmação. Que a luta pelos direitos não seja compreendida como uma guerra contra aqueles que não estão contemplados nas cotas. Não devemos abrir focos de luta com as vozes discordantes, mas convencê-los das atrocidades cometidas em nome de um Estado cruel, juntar todos em uma só canção. Só assim o negro continuará a produzir ainda mais milagres de fé no extremo ocidente – e acho que o próximo milagre já pode ser definido: que todos entendam que só existe uma raça: A RAÇA HUMANA. O resto é fruto da estupidez gananciosa, histórica e biológica.

*Erivaldo Oliveira é Economista e Administrador, MBA – Executivo em Finanças e Planejamento Estratégico, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Especialista em Ciência Política, Professor Universitário e Consultor nas áreas de Finanças Públicas e Planejamento Governamental.

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