terça-feira, 23 de agosto de 2016

O MORTO QUE ANDOU DE TAXI

Crônica do amanhecer

Hélcio Silva

(23/08/2016)


Fez sinal de parada. O taxi parou. O cara entrou e colocou o cinto...

- Destino?! – indagou o motorista.

- Rua do maluco doido...

- Onde fica?

- No bairro do hospício...

O motorista ficou logo assustado..., e perguntou ao passageiro.

- Moço, diga-me uma coisa: seus miolos estão ajustados? Você bate bem da cabeça?...

- Nunca fiz gol de cabeça, mas chuto com os dois pés... Quanto aos miolos, já os mandei ajustar. O meu vizinho eletricista - chamado José - formado em eletricidade de choque - fez o serviço com uma chave de fenda que pertencia ao seu bisavô... O cara apertou todos os parafusos... Nenhum está mais pulando...

O motorista, mais assustado ainda, apreensivo, com medo e com os olhos esbugalhados, apertou o play para ouvir uma música... E entrou o Gonzagão, abrindo a asa branca:

"Quando olhei a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu...
Por que tamanha judiação"

- Motorista, eu tô te judiando?

- Não! É que essa cidade tá cheia de buraco e minha barriga balança todinha por dentro...

- Usa cinta na barriga... Nesta cidade, cheia de buracos, só se anda de carro com cinta na barriga e touca elástica na cabeça pras merdas e miolos não pularem fora...

- Cara, eu estou vendo que estás de touca na cabeça... “Tás” também de cinta?

- Sou precavido...

E o motorista, já p. da vida, aumentou o volume do radinho... e o Gonzagão mandando brasa:

“Que braseiro, que fornaia
Nem um pé de plantação
Por falta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão”

E o motorista continuou a viagem pelo roteiro indicado, até que o malucão apontou o dedo e disse:

- É ali, motorista..., naquele portãozão de entrada..., onde não tem gado, por “farta” d’água!

- Cara, tu és defunto?... Isso é um cemitério!

- Sim! Sou um morto... Eu era motorista, taxista dos bons!  Caí num buraco, o carro virou, rolou em poças de águas sujas e paradas, todas cheias de lixo e dejetos... Fiquei sufocado pelos dejetos de água de esgoto e lixo... Morri afogado!...

- E não sobrou um trocadinho pra pagar a corrida?

- Como, cara?!  Não posso te pagar. O dinheiro também morreu..., afogado... Virou pedacinhos misturados aos dejetos..., tudo misturado na merda!

- E agora, com que dinheiro vou comprar o leite dos meninos? Essa foi a única corrida que fiz hoje... E pra azar uma corrida para um morto liso!...

- Meu amigo! Não é a mim que deves reclamar... Precisas falar duro pra teu prefeito que ele precisa (ou precisaria) ter melhor cuidado com a cidade. Ele enrolou todo mundo e ainda tá enrolando... A cidade, sequer, tem um Plano de Saneamento Básico... Eu morri porque fui atropelado pelos buracos e acabei afogado nas águas de merda...

O motorista deu meia volta e aumentou o volume do radinho que já tocava o hino da cidade, deixando saudade aos que amam realmente a cidade:




Ó minha cidade
Deixa-me viver
que eu quero aprender
tua poesia
sol e maresia
lendas e mistérios
luar das serestas
e o azul de teus dias

Quero ouvir à noite
tambores do Congo
gemendo e cantando
dores e saudades
A evocar martírios
lágrimas, açoites
que floriram claros
sóis da liberdade

Quero ler nas ruas
fontes, cantarias
torres e mirantes
igrejas, sobrados
nas lentas ladeiras
que sobem angústias
sonhos do futuro
glórias do passado

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