O Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo reabriu as
investigações sobre o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido em
1975, durante a ditadura militar no Brasil. A reabertura foi possível após a
condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), no início deste mês, pela
falta de investigação, julgamento e sanção dos responsáveis pela tortura e
assassinato do jornalista.
Adicionar legenda Jornalista Vladimir Herzog |
Aos 38 anos, Herzog apresentou-se de forma voluntária para
depor perante autoridades militares no Destacamento de Operações de Informação
- Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/Codi). Foi preso, interrogado,
torturado e morto no local. Na época, o jornalista foi declarado morto em
consequência de “suicídio”, versão contestada por sua família desde o início.
“Queremos a Justiça, queremos conhecer os culpados, mas não
é simplesmente uma questão de reviver o passado, mas de construir um futuro
melhor. O presente que temos hoje é resultado do passado. Esse passado, se
analisarmos os últimos 200 anos do Brasil, não mudou em nada. Os agentes do
Estado continuam cometendo crimes e saindo impunes”, disse Ivo Herzog, filho do
jornalista, que faz parte da Ouvidoria de Polícias do Estado de São Paulo.
“No ano passado, os agentes do estado [de Sâo Paulo]
mataram mais de 900 pessoas. Isso é duas vezes o número de mortos e
desaparecidos na ditadura militar em 20 anos. Esses crimes não vão a
julgamento, menos de 8% dos crimes são investigados”, lamentou.
Na tarde desta segunda-feira (30), procuradores da
República, integrantes do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), a
viúva do jornalista, Clarice, e o filho, Ivo, concederam entrevista coletiva na
sede da TV Cultura, onde Herzog trabalhava, para esclarecer o alcance da
decisão da Corte em relação ao caso.
Crime contra a humanidade
Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso
Herzog cumpriu os requisitos de crime contra a humanidade, o que extingue as
possibilidades de prescrição e de anistia dos torturadores e assassinos. O
procurador da República Sergio Suiama, que atuou como perito na CIDH na
avaliação do caso Herzog, disse que a forma como se organizou a repressão
política no Brasil consistia em um ataque sistemático e generalizado contra a
população e que isso foi confirmado com a sentença da Corte.
“[A conclusão é que] aqueles crimes cometidos por agentes
da ditadura militar brasileira não eram crimes comuns, eram crimes de
lesa-humanidade”, afirmou o procurador. Ele explicou que a condição de crime de
lesa-humanidade – ou crime contra a humanidade – tem duas principais
consequências jurídicas: a não prescrição e a não suscetibilidade de tais
crimes à anistia. Ambas argumentações (prescrição e suscetobilidade à anistia)
têm sido usadas no Brasil pela Justiça para que agentes repressores da ditadura
militar não sejam responsabilizados.
Aplicação em outros casos
A diretora do Cejil, Beatriz Affonso, destacou que a
decisão vale para outros crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil.
“Nos demais casos [de crimes durante a ditadura] que estão
já denunciados pelo Ministério Público [Federal], repetem-se as características
de crime contra a humanidade. A sentença da Corte não se restringe ao caso do
Herzog, por isso que ela fala de
contexto de crime contra a humanidade. Ou seja, ela entende que todas as
violações que foram praticadas por militares e civis a mando da ditadura
militar, de 1964 a 1985, ocorreram no contexto de crime contra a humanidade”,
explicou..
Beatriz ressaltou que a Lei da Anistia, que é amplamente
utilizada para obstruir as investigações e trazer para a sociedade a verdade
sobre os crimes da ditadura, e a prescrição são dois institutos que não devem
mais ser considerados pelo fato de os crimes que ocorreram durante a ditadura
no Brasil terem sido em contexto de crime contra a humanidade, reforçando a
impossibilidade desses recursos quando o crime tem essa característica,
conforme estabelecido pela Corte.
Até agora, o MPF propôs 36 ações penais que tratam de
crimes de repressão cometidos durante a ditadura nas comarcas do Rio de
Janeiro, de São Paulo, Marabá (Pará), do Tocantins, de Rio Verde (Goiás) e
Florianópolis. Na ações, foram denunciados 50 agentes da ditadura.
De acordo com o MPF, as 36 ações penais estão embasadas em
provas testemunhais e documentais, que demonstram não só a ocorrência de crime,
ocultação de cadáver, homicídio, sequestro, falsificação dos laudos
necroscópicos, mas também comprovam a participação dos agentes específicos envolvidos
em cada crime.
Precedente de Nuremberg
Segundo o procurador da República Marlon Weichert, que foi
testemunha na Corte Interamericana no caso Herzog, desde o julgamento de
Nuremberg (Alemanha), ocorrido após a Segunda Guerra Mundial para julgar crimes
de guerra e contra a humanidade, o direito internacional “havia consolidado o
entendimento de que esses crimes, que são os mais graves, crimes que a
comunidade internacional não admite, não podem ficar impunes. E que nenhuma lei
interna, nenhum país pode aprovar uma lei que deixe esses crimes impunes, sejam
normas de anistia. Os obstáculos domésticos cedem diante da gravidade desses
crimes”.
Weichert acrescentou que a Lei da Anistia no Brasil é
invalidada após decisão da Corte Interamericana com a classificação de crime
contra a humanidade. “O Estado brasileiro, todos os órgãos do Estado
brasileiro, Ministério Público, polícia, Judiciário, além de Legislativo e
Executivo, precisam aplicar essa decisão da Corte Interamericana”, disse o
procurador, referindo-se a todas as ações relativas a crimes de repressão
praticados, durante a ditadura militar, contra a população civil.
O procurador lembrou que a Justiça tem barrado ações de
crimes ocorridos durante a ditadura, utilizando, sobretudo, os argumentos da
ADPF 153 (Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental 153), em que o
Supremo Tribunal Federal se posicionou contra a revisão da Lei da Anistia.
Diante disso, Weichert destacou a importância da decisão da corte
internacional, que "reavaliou toda a matéria e subiu um patamar de
argumentação. Antes, a Corte falava de graves violações de direitos humanos;
agora falou expressamente, qualificou os crimes praticados pela repressão
brasileira como crimes contra a humanidade”.
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