Sebastião Nery
RIO – Quando o Senado e a Câmara Federal reabriram em março
de 1970, senadores e deputados governistas foram ao Alvorada para uma visita
sabuja de cortesia ao novo ditador, o general Médici. Chagas Freitas, então
deputado, foi apresentado pela primeira vez ao presidente, que lhe disse:
– Preciso falar com o senhor.
Chagas ficou como uma vela de óculos. Puxou pelo braço o
deputado Rubem Medina, da Guanabara, e um deputado da Arena de São Paulo, que
tinha ouvido a conversa, e lhes perguntou, todo perturbado:
– Vocês imaginam o que seja?
– A sucessão carioca, evidentemente – disse Medina.
Mas o deputado paulista resolveu fazer uma brincadeira:
– Não é nada disso, e eu estou bem informado. Sua situação
não está boa. Não quer dizer que você vai ser cassado. A Arena do Rio já foi
avisada de que em hipótese alguma o governador será você. Problemas de
organização do diretório, excessivo controle do partido. O presidente não quer
uma solução do tipo PSP (o ex-partido de Ademar) para a Guanabara.
Chagas saiu do Alvorada em pânico. No dia seguinte, voltou
para o Rio e chamou seu staff para uma reunião em casa: Erasmo Martins Pedro,
Miro Teixeira, Rossini Lopes, presidente da Assembleia, e outros. Contou a
história e suspirou, olhando para o teto, por cima do aro dos óculos:
– Preciso tomar providência urgente. Já tinham me avisado
que, se eu não fizer trabalhos seguros, o azar superará as possibilidades. Só
uma força superior para enfrentar os “serviços” que estão fazendo contra mim.
Erasmo, evangélico, sorriu mole, não disse nada. Rossini
resolveu:
– Sou “cambono” (acólito, ajudante de sessões de Umbanda)
de “Seu 7 da Lira”. Dona Cacilda sabe de tudo e tem força para desmanchar.
Tocaram para o Terreiro de “Seu 7”, em Santíssimo. A
comitiva tinha oito carros, um oficial, os demais particulares.
Chegaram exatamente à meia-noite, no meio da sessão. Chagas
ficou no carro, Rossini entrou sozinho, falou com dona Cacilda. Ela interrompeu
a sessão, recebeu Chagas reservadamente, para ele não ser visto pela gente toda
que estava lá. “Seu 7” fez uma cara de horror:
– A situação é negra. Há muita gente convocando espíritos
maus contra o senhor. Preciso fazer, e fazer logo, um trabalho pesado com 3
bodes pretos. Nem cabra nem carneiro servem. Só bode.
Onde encontrar, naquela hora, 3 bodes pretos?
Os 9 carros saíram em direção a Campo Grande. Pararam à
beira da estrada, cabra tinha muita, mas bode nenhum. Chagas ficou com Erasmo
dentro do Galaxie oficial e Rossini saiu comandando o pelotão dos caçadores de
bode preto, todos agachados dentro do mato.
De repente, dentro da noite, vinda lá do matagal, ouviu-se
a voz de comando de Rossini, gritando como um possesso:
– Vamos berrar que eles aparecem! Todo mundo berrando! E
começaram todos a berrar:
– Béééé! Béééé! Béééé!
Pelo berro ou pela sorte, às 4 da manhã três bodes pretos
tinham sido capturados entre Santíssimo e Campo Grande, subúrbios do Rio.
Chagas, aflito, suava como um cão de caça. E Erasmo, todo encabulado, pensava
certamente na palavra de Deus, sagrada na Bíblia, que desde o Antigo Testamento
proibiu adorar bodes e bezerros, mesmo quando de ouro.
Voltaram. “Seu 7” abriu os três bodes a facão, pegou as
vísceras e passou, ensanguentadas, no corpo inteiro de Chagas, da cabeça aos
pés. A roupa branca de Chagas parecia véu de Verônica. Foi um banho de sangue.
Um ano depois, Chagas tomava posse no governo da Guanabara.
Nunca mais sobrou bode preto entre Santíssimo e Campo Grande.
Haja bode preto.
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